segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Para Sonia -
que fez esse livro aparecer.

1.

Foi no primeiro dia de férias de um verão quente e luminoso que mostrei pela primeira vez o meu pau duro para Sheila.

Tudo o que principiava a acontecer eu viria chamar de "minha experiência". Mas, naquele momento, "tudo" se resumia unicamente em cansar desesperadamente o próprio corpo. A vida era muito simples: antes ou depois ou nunca, conforme as coisas fossem acontecendo, ou não tivessem acontecido. Se havia mais do que isso, eu não sabia.

Eu tinha treze anos e no entanto não demonstrava nenhuma aptidão que me distinguisse do resto dos outros garotos. Na verdade tinha-as de menos: eu não era atlético, meu nariz não era grego e meus cabelos espetavam-se num tufo irado, indiferentes a qualquer pente que por eles deslizasse. Meu pinto também era o menor e a cabecinha continuava subjugada pelo prepúcio que a recobria. Mas a natural petulância daquela idade, unida ao meu louco amor por Sheila, estimulavam-me naquele momento a desafiar a própria lei da gravidade.

Erguendo-me na ponta dos pés – como num sonho – pois somente tal condição me propiciaria esta faculdade - eu me lançava de olhos fechados no vôo de minha fantasia. Julgava-me simplesmente a mais bela forma de uma paixão que começava.

Tudo não passava, é claro, do produto da minha imaginação multiplicada pela impossibilidade de alcançá-la. O amor, que poderia fazer dela a minha garota, simplesmente não entrara no universo das suas cogitações. Sheila tinha pouco mais do que eu, e nenhum dos outros meninos chegara ainda aos quinze anos – e o amor permanecia numa região ignota e intocada, onde nossa condição primitiva não permitia o divisar.

Éramos os garotos do rio e estávamos prontos a agarrar a chance que se avizinhava, tal como primitivos sáurios emboscados, aguardando a presa que inadvertidamente se aproximasse.

Talvez por ainda não saber amar Sheila desconhecia todos os riscos da minha paixão – ela simplesmente não saberia enfrentá-los. Nem por isso deixava de ser menos corajosa. Ela foi a única menina que se atreveu a vir até o nosso refúgio de pedras no meio do rio.

Usávamos as pedras como trampolim e, ultimamente, como os duros leitos para os nossos desejos juvenis fustigados por ereções cada vez mais numerosas. As ereções começaram quase ao mesmo tempo com todos, como uma epidemia que se propagava.

Sentíamo-nos com elas possuidores de uma distinção que nos incluía no rol dos verdadeiros homens. Aguardávamos a partida para um novo mundo, que apenas prefigurávamos, cada vez mais afastado deste, no qual tínhamos permanecido até hoje. O novo mundo supúnhamos, devia estar repleto de reentrâncias e saliências, às quais, em breve, acreditávamos, haveríamos de agarrar, penetrar e explorar incansavelmente.


2.

Sheila desceu do barranco onde estivera por quase toda a manhã. Prendeu a saia entre as pernas e estendeu o pé para provar a temperatura da àgua. Imediatamente a ferocidade instalou-se entre nós. Éramos como estes animais primitivos e rancorosos que atacam em bando mas que, sozinhos, não tem a menor coragem de arremeter. Eu era o sáurio mais fraco, mas não o menos perigoso e, dentre todos, o que estava mais faminto.

Até aquele ano, as diferentes estações foram sinalizadas por jogos e brincadeiras, como um calendário imemorial e consabido: a búrica desaparecia misteriosamente num indeterminado fim de tarde, para dar lugar às partidas de bete na manhã seguinte; da mesma forma, as pipas armadas com papel de seda e varinhas de paina ascendiam num belo dia, quando não se pensava mais avista-las, como se um acordo secreto reunisse a garotada nas disputas para derrubar umas às outras, nas guerras do cerol. Durante anos seguidos foi o que aconteceu. Então, começaram as ejaculações. A partir daí, o véu do sarcasmo endureceu nossas expressões infantis. Onde antes havia doçura e credulidade, assomavam agora as ímpias sementes da perfídia e da astúcia. Uma maledicência pesada cada vez mais se imiscuia nas nossas disputas à medida que lidávamos com aquilo, como um novo jogo que nunca acabava. Era como se, nos agredindo mutuamente, estimulássemos a precoce masculinidade que nos invadia. E, se não gozávamos, deitávamo-nos silenciosos como uma muda assembléia de lagartos venenosos.

Sheila não levou em conta nada disto quando se meteu com água pelo meio das coxas, vadeando o rio na parte mais profunda da correnteza. Ela também não se dava conta de que o vestido ia ficando todo molhado, revelando as formas do seu pequenino corpo de mulher que aflorava.

Resvalava no caminho submerso das pedras, mas sempre aproximando-se, como se já levasse inoculada no seu jovem ser a determinação com que encetaria a sua corajosa trajetória num mundo repleto de machos famintos.

A correnteza, às vezes, a obrigava a retroceder. Por um momento ela parou e encarou a todos nós com uma expressão de desânimo, como se aprisionada na própria armadilha que fabricara. Os sáurios temeram que a presa retrocedesse e escapulisse.

Queimávamos a pele nas rochas aquecidas de sol, que se dilatavam numa exsudação mineral. Era como se devêssemos aplacar, numa fornalha ainda maior, aquele furor que nos devorava.

Quando vi Sheila, fui instantaneamente atingido pelo raio da doçura. Imaginei que ela estava se dirigindo só para mim, através de uma corrente de afeição mútua que brotara. "Venha, Sheila, venha bem em minha direção, faltam só poucos metros para chegar. Me dê a tua mão. Pobrezinha, toda enregelada. Por fim! Vou puxar!" E preparei o salto, temendo que os outros, mais rápidos, conseguissem arrebatá-la.

Mas não foi para mim que ela veio quando trepou sem nenhuma ajuda numa de nossas pedras. O que ela viu, isto sim, foi como todos os garotos saltaram como um feixe de molas ao apelo do seu brado: "Vamos brincar de estátua!?"


3.

Era o primeiro dia de férias de um verão quente e preguiçoso. As aulas haviam terminado e o tempo resumia-se na espera de um acontecimento que nos arrancasse da inelutável prisão dos nossos sentidos. Procurávamos uma brecha onde desvendar o sendeiro dos nossos desejos, agora quase palpáveis, mas que escapavam entre os dedos, naquele dolorido vai-e-vem, com que arregaçávamos o prepúcio durante as nossas ereções parvas e desgovernadas.

Sheila estava a sufocar-nos na imobilidade, enquanto passeava o olhar por nossos corpos molhados, numa escolha longa, cruel e dolorosa. Esta é a maneira como certas brincadeiras infantis, levando-nos ao completo esgotamento físico, expõem, inadvertidamente, a essência daqueles futuros acontecimentos, que, em algum instante, se tornarão na vida de alguém. Ela esperava por uma resposta cuja sinceridade, daquela forma, era impossível iludir.

Sheila não corria nenhum perigo conosco: "faça você primeiro", comandou confiada de seu poder, e eu vi que os braços dela estavam molhados até as axilas. "Vamos, invente logo alguma coisa!" O menino escolhido caiu de joelhos e abriu os braços. Foi imediatamente rechaçado: "Essa, não! Tem que ficar mais bonito. Olhe só...” E desceu sobre os joelhos, deixando os cabelos tombar deliciosamente para frente, descobrindo uma nuca límpida onde jamais um beijo havia sido plantado. "Quero ver quem vai ser estátua agora.” Girou a cabeça, deixando descoberta uma das faces do rosto, conforme completava a inspeção ao redor. Erguia impaciente a sobrancelha visível, como se aquela não fosse apenas uma brincadeira de crianças.

"Quem mais? Quero ver mais uma!” A voz tinha uma inflexão precisa, categórica, como se os seus planos estivessem sendo burlados. Ela apontava o dedo para aquele de nós que se assemelhava a um pequenino touro . Era um garoto truculento que vivia a afogar-nos sem piedade com caldos e rasteiras sob a água. Eu não o temia apenas. Odiava-o. Ele tinha predileção por me perseguir. De todos, eu era o mais fraco e também nadava mal. Ele podia matar-me, mas decidi que o faria primeiro. Só não sabia como. Enquanto isso, ele me atormentava. Os outros covardes não me socorriam e eu acabava me defendendo sozinho das investidas daquela espécie de buldogue.

A minha pedra ficava quase que totalmente sob a água. Gostava de deitar sobre o seu leito frio e chato, envolvendo-a com os meus braços e deixando a rigidez da sua matéria invadir o meu corpo. Meus pés permaneciam submersos e a cabeça pendia para a correnteza que fluía diante de meus olhos. Os pensamentos flutuavam por um instante ao meu alcance, mas eu não os recolhia. Em seguida, fugiam para longe de mim: eu esperava que no caminho alguém desse com eles e depois os seguisse de volta, chegando até onde eu me encontrava.

Cada um dos garotos ficava sobre a “sua” pedra, como senhor de um castelo. O desafio era defendê-la, como numa dessas estúpidas e infindáveis guerras medievais, em que se combate pela mais absoluta falta do que fazer. De tais batalhas sem mortos, mas nem por isso sem crueldade, e portanto não menos indolores, eu, pela impossibilidade de suplantá-los, procurava me manter afastado. De fato, meu quinhão não constituía ameaça ou insuflava a cobiça. A minha pedra era um feudo desprezível, pelo qual não valia a pena lutar. Ao menor sinal de perigo, eu estava pronto a abandoná-la. Sabia que o inimigo não ficaria muito tempo com ela. Tornaria a recobrá-la logo que ele houvesse partido, sem ter encontrado nada que saquear.

O concurso de Sheila era a oportunidade de sacudir a letargia daquele interminável banho de rio. Ela nos estimulara ao recusar o primeiro menino, estabelecendo a regra pela qual poderíamos conquistá-la. Ao demonstrar como queria que o fizéssemos, depois de ter arrostado a força da correnteza, saltando sobre as pedras, ela nos desafiava atiçando uns contra os outros, já de antemão vencedora, qualquer que viesse a ser o resultado da disputa.

Eu queria o troféu. Ainda que não soubesse qual seria, logo compreendi que, para derrotar os outros, de nada me serviriam vigor e brutalidade, mas sim as armas da paciência e da dissimulação.

Contava com que meu oponente desmoronasse. Ele apoiara os antebraços na rocha e apertava os dedos entrelaçados atrás da nuca. Com as pernas unidas para o alto, ele procurava manter o corpo estático, enquanto Sheila dava voltas e mais voltas ao seu redor contando o tempo, talvez para matá-lo. Esperei pela queda do maldito Golias; que ele despencasse e batesse com a cabeça na quina de uma pedra! A correnteza cochichava aos meus ouvidos, como me segredando o que estava para acontecer. O brutamontes já revirava os olhos esperando por um sinal que o libertasse da situação em que se metera. O sangue afogou a sua expressão, agora transformada em careta. A estátua começava a ruir. Eu da distância segura de minha pedra acompanhava deliciado aquele momento. As pernas finalmente se dividiram como um compasso abrindo, sem outro apoio que o próprio ar para agarrar e não cair. Inútil. O massa-bruta que eu tanto odiava desabou. Foi dar com a cara em cheio numa pedra no fundo do rio. O sangue escoou profusamente da fenda aberta na testa. Eu não conseguia disfarçar o júbilo que me invadiu. Esquecendo as consequências que poderiam advir de tal descuido, gargalhei vitoriosamente. Entretanto,ele não me ouvira. Debatia-se furioso apertando a ferida sem que nenhum dos covardes quisesse socorrê-lo. Tanto quanto eu, sentiam-se vingados e aliviados com a derrota do cachorrão.

Quando Sheila se dirigiu para mim, me ergui no meu pedestal como uma destas arrogantes figurinhas aladas sobre a tampa cromada de um radiador de limusine. Como uma elas, igualmente entorpecido nas asas da velocidade que insuflava os sonhos mais desabalados, eu me exibia de pé na borda de um penhasco. Meus pés eram beijados pela correnteza gelada... As pernas finas emergiam de um vasto calção azul de nylon... E o pau estava de fora... Irremediavelmente empinado!


4.

Era o primeiro dia de férias de um verão quente e perigoso. Caindo em cascatas, a luz cintilava entre as folhas num movimento de feixes verticais, borrando o furtivo esconde-esconde da sombra e da luz, para criar uma abóbada totalmente iridescente, onde agora eu me escondia do espanto que criara.

Fugi sem olhar para trás, enquanto Sheila gritava tapando os olhos para não ver os meus prodígios. Escapuli, saltando de uma pedra para outra até a margem, sem que os moleques conseguissem me agarrar. Uma chuva de pedregulhos aguilhoou dolorosamente minhas costas e afundei no mato, colhendo o chicote dos ramos no rosto, no peito, nos braços, estropiando as pernas nos espinhos, sem escolher por onde ir, como um bicho assustado demais para retroceder.

Acompanhava-me a nítida sensação de que naquela brincadeira infantil eu havia ultrapassado os limites toleráveis de toda benevolência divina. Será que Deus não me vira? Como é que Ele não me vira? Tinha certeza que sim! Ele me vira, como todos os outros, com o meu pau bem durinho apontado direto para Sheila. Era nada mais do que o primeiro dia de férias de um verão quente e pecaminoso.

O sol nascia mais cedo e as manhãs eram intermináveis, como se a própria vida não fosse nunca adiante. Os dias se assemelhavam uns aos outros e se acumulavam unicamente para serem repartidos, os dias passados, ontem, os de agora, hoje, e os novos, sempre. Entretanto, era como se agora mais nenhum pudesse ser perdido inconseqüentemente. Eu teria de depositar o óbolo correspondente a cada um deles e, assim, comecei a me dar conta de que a vida estava passando, e temi que ela terminasse antes que eu chegasse ao final.

Eu já podia ver a mãe de Sheila correndo para nossa casa. Ela vinha gritando na rua. Sheila soluçava confirmando tudo. Os outros garotos mostravam o que eu tinha feito na cabeça de um deles quando tentaram me agarrar. O moleque ferido gemia e jurava vingança. A mãe de Sheila também. Minha mãe mandava que saíssem imediatamente atrás daquele filho irremediavelmente daninho. Era o primeiro dia de férias de um verão quente e impetuoso.

Quem sabe o meu saldo de pecados, diante da Sua infinita bondade, fosse menor do que o do meu oponente? Talvez Ele também compreendesse que eu não tivera rédeas contra o ímpeto que tão poderosamente aflorara diante dos olhos de Sheila. Afinal, eu contava menos de quatorze anos de idade! Naquele momento de desespero, os meus minguados anos de vida pareciam a única desculpa possível para tentar obter a minha absolvição.

Mas agora todos queriam me condenar, mesmo que eu jurasse para mim mesmo que tampouco tive meios de premeditar como tudo veio acontecer. Tanto era assim, que ademais de alguns arranhões, o meu exibicionismo até agora não fora punido. O outro sim, é que estava com a cabeça rachada! Tais eram os inescrutáveis desígnios do Senhor. Era do que eu precisava convencer a todos lá em casa.

Umedeci com saliva os cortes mais profundos nas canelas. Amarrei a camiseta como um turbante na cabeça e, com uma nuvem de mosquitos nutrindo-se do meu sangue mau, comecei a descer pelo outro lado do morro onde tinha ido parar.

Despedindo-me do rio, me pus a caminho da rodovia que cortava a nossa região. Eu queria carona num daqueles imensos caminhões que passavam carregados de milho e soja. Depois, para bem longe, me esconderia num navio saindo do porto. Ou, melhor ainda, iria me unir a uma tribo de ciganos que eu via de vez em quando acampados na planície.

Quando era ainda muito pequeno, minha mãe me mostrou o círculo de tendas na planície. Ela me segurou pela mão para que eu não escorregasse e caísse. Caminhamos até o alto do morro. Quando chegamos, ela se ajoelhou com a boca colada ao meu ouvido para que o vento não espalhasse as suas palavras. Apontou com temor para as barracas de lona de onde partiam agulhas de fumaça em direção ao céu. Os ciganos eram nômades. Minha mãe segredou-me que eles passavam a existência perambulando sem retorno. Também eram trânsfugas, e ninguém deles se apiedava. Eu me encolhi amedrontado com aquelas duas palavras que ouvia pela primeira vez: nômades; trânsfugas. Pareciam vaticinar algo poderoso e irremediável, do qual certamente quem fosse posto na sua categoria, haveria de se arrepender amargamente pelo resto da vida.

Entretanto eu não via o perigo. Via, isto sim, que as mulheres, na campina abaixo, flanavam amplas saias coloridas, e exibiam uma profusão de jóias e correntes sobre vastos decotes descobertos. Quis juntar-me imediatamente a tribo e partir pelo mundo. Minha mãe garantiu que se me pegassem, me fariam de escravo e iria passar o resto da vida no fundo de uma tenda. Não me deixariam ver nunca mais a luz do dia.

Procurei o calor de minha mãe, sem desgrudar os olhos das tendas tão amplas e arejadas, imaginando o sabor nos meus lábios dos vastos decotes perfumados.

A estrada estava deserta e não havia nenhum sinal dos ciganos na planície. A terra estava seca e manchada pela cinza das fogueiras do antigo acampamento. Preso num ramo, um trapo ondulava como o último vestígio da caravana que partira.

Deitei no chão, atrás de um montículo de terra que o vento agregara numa forma arredondada e dura. Alguma coisa parecia estar presa no seu interior. Ao meu redor a planície resplandecia, como um planeta desabitado sob um sol desconhecido.

Há esta hora já deviam saber em casa do feito que eu cometera sob o traiçoeiro manto de uma brincadeira infantil.De tais atos somente os animais, os loucos e os desesperados são capazes. Entre qual deles minha mãe iria me incluir?

Lembrei-me com olhos umedecidos de como me socavam no rio. Prendiam-me no fundo sem respiração. De bom grado voltaria àqueles momentos se me servissem agora de penitência. Jurei que nunca mais olharia fixamente para o corpo de qualquer mulher.

Esperei por um sinal de que meu arrependimento fora aceito. Em vão. O vento continuava tangendo o trapo na mesma direção. Deus não queria mais nada comigo.

Eu já via toda a vizinhança reunida na sala de jantar. Minha mãe aparecia soluçando no seu desconsolo. Alguém a amparava pelas costas para não cair. Esperavam a camionete da correcional chegar para me levar. Eu me agarrara à maçaneta da porta da frente. Os soluços de minha mãe se transformavam em uivos. Abriam meus dedos à força. As outras mães e o resto da criançada aglomeraram-se diante da escada do pequeno edifício onde vivíamos. Faziam-me atravessar a multidão aos empurrões. Minha mãe emergia como um espectro de uma janela. Clamava pelo filho que lhe era arrancado. Suplicava que o perdoassem. Em vão. Meu pai tentava fechar as cortinas com medo, talvez, de que ela se lançasse ao poço do desespero. Os moleques na rua cuspiam e me beliscavam. Ameaçavam-me. Eu queria sumir logo dali. Dentro da camionete me senti mais aliviado. Ao menos não podiam me alcançar. Mais um pouco e teriam me linchado. Uma corrente de aço trancou a portinhola de ferro com uma chacoalhada de anéis seguida do estalo no cadeado. Finalmente, para júbilo de todos que me queriam distante, a camionete partiu estrepitosamente rua afora com o seu prisioneiro.

Eu deixava para trás os livros de onde tirei o discurso de Marco Antonio para sussurrar ao ouvido de Sheila, assistindo em cinemascope a morte de Júlio César - friends, romans, countrymen - apaixonado por Cleópatra - lend me your ears - sem poder voltar para o Egito enquanto Sheila arrepiava-se toda, encostando-se cada vez mais gostosamente em mim, para morder as pipocas que eu derrubava uma a uma em sua boca, enquanto minha outra mão embrenhava-se cada vez mais entre suas coxas na hora em que Elizabeth Taylor deixava-se picar no pescoço. Quando as luzes piscavam ao final da sessão, eu abotoava freneticamente a braguilha ao tempo que Sheila procurava abaixo dos joelhos the evil that men do! - a calcinha que eu quase tinha arrancado quando me jogaram numa jaula, Oh! Ave Maria mais cheia de Graça! Lend me your ears assim na Terra como no Céu!

Eu já estava conformado em nunca mais ser perdoado. Mas, naquele momento, só pensava em voltar logo para casa atrás de um bom prato de comida. Se não fosse pela mãe de Sheila, já teria pulado para dentro tal qual gato esfaimado.

Como o susto já esfriara, eu me sentia disposto a enfrentar o olhar gelado de minha mãe com a cara mais sisuda e ajuizada que pudesse fabricar para a ocasião. Era o primeiro dia de férias de um verão quente e dissimulado.

Eu estava a ponto de ser mandado para a cadeia, mas só pensava em comer. Foi então que encontrei um sendeiro de deslumbrante clareza a minha volta. Veio numa imagem poderosa: os sete pecados capitais modelados em gesso que papai pendurara na parede da sala de jantar. Inveja, Mentira, Luxúria, Gula, Ódio... Eu me reintegrava aliviado a minha castidade, um pouco manchada é claro, mas ainda intacta, na trilha das tentações que mamãe diariamente providenciava para os nossos desejos gulosos de tortas, pudins, sorvete e talharim feito em casa. O pecado também morava lá em casa. Eu podia retornar!

The evil that men do! ainda ressoava em meus ouvidos, mas não mais como a perene realidade de minha existência. Eu era mau, mas mamãe também tinha sua parcela de culpa num dos sete pecados capitais do mundo. Cheguei em casa soluçando de pura felicidade. Abracei minha mãe. Ela me esperava com aflição. "Isto são horas?" Farejei o ar. "Me perdi, mas logo achei o caminho de volta e me salvei. O que tem aí pra comer, mamãe?”


5.

Eu não tinha amigos. De fato, eu não sabia fazer amigos. Eu não queria amigos. De fato, eu não sabia fazer nada! Era o que meu pai afirmava a todo momento. Foi a primeira coisa que ele me ensinou.

Meu pai carregava no rosto os vincos de uma permanente insatisfação. Fui para o banheiro e baixei o calção. Olhei o pau. Estava mirrado como um carneirinho tosquiado. Comecei a pensar em Sheila: desculpe que só penso em você no banheiro, Sheila. Não me leve a mal. Apesar das circunstâncias, eu queria aproveitar e agradecer por você não ter contado nada à sua mãe. Prometo que se você não vai mesmo contar nunca mais, eu te mostro o pau de novo quantas vezes você quiser .

Minha mãe gritou para eu me apressar no banheiro. Meu irmão Monce gritou para que eu me apurasse no banheiro e meu irmão Seto gritou para que eu desocupasse logo o banheiro. Toda a familia queria entrar no banheiro e eu continuava pensando em Sheila debaixo daquela gritaria. Meu pai berrou para que eu abrisse logo a porta, apagasse a luz, saísse fora do banheiro e fosse comer o jantar de uma vez.

"Veja como estão as pernas deste menino"! Era uma ameaça. Me preparei para responder onde e como eu tinha conseguido aquelas pernas. Ah, se eu pudesse contar! Inútil. Meu pai nunca haveria de entender que ficaram daquele jeito por infelicidade no amor. Ele enxergava unicamente os sinais exteriores da minha personalidade destrutiva e arrogante: como eu tivera a coragem de aparecer em sua casa daquele jeito? Era preciso consertar aquilo de uma vez. Meu pai prometeu me ensinar uma boa lição dali a pouco. A segunda lição de meu pai foi tornar-me um covarde.

Meu irmão Seto deslizou sob a mesa e inoculou uma das minhas feridas com um fiapo de piaçava. Gani de dor e disparei uma patada. Ele começou a choramingar apalpando onde eu o atingira. Minha mãe ordenou que eu parasse de provocar o meu irmão. Eu precisava comer e aquela tortura não acabava.

Pequenos acontecimentos, como este, transformavam-se em obstáculos intransponíveis para a nossa felicidade. Eu teria preferido haver esmigalhado as pernas pois então, com certeza, o aborrecimento de meu pai teria valido à pena. Minha mãe começou a encher o meu prato. Ela protegia o marido e os filhos uns dos outros. Vivia num fogo cruzado: somos pobres demais para cometer qualquer erro, dizia-nos assustada. Não podíamos, por isso, nunca! ser apanhados em qualquer falha. A vida era espantosamente impiedosa.

Ela ordenou que eu olhasse para o prato e começasse. Ataquei o prato e a primeira garfada de comida quente pelou-me o céu da boca. Do outro lado da cozinha meu pai me encurralou com o olhar.

Minha mãe passou a vida toda assustada com seu marido. A doçura que tiveram um dia, foi ofuscada depois pelos sofrimentos comuns da vida. Submeteu-se. Não teve forças suficientes para lutar contra a infelicidade que se interpôs entre ela e seu marido e nunca soubemos de onde tirava aquilo de que mais necessitávamos: calor! Mas quando meu pai esquecia que eu não sabia fazer nada, e quando a vida não estava tão amarga para eles, uma infinidade de coisas boas acontecia naquela casa. Um ritmo constante brotava da trabalheira de minha mãe para nos vestir, alimentar e lavar, e a casa parecia uma locomotiva regurgitando vapor, energia e mil cheiros diferentes. Havia o cheiro da polenta fritando na manteiga derretida sobre a chapa do fogão. Minha mãe cortava as fatias de polenta bem fininhas, usando uma linha de costura. Como não dava para ver a linha esticada, eu acreditei durante muito tempo que as fatias caíam uma a uma dos seus dedos unicamente por sua vontade. Ela fazia nós miudíssimos e os seus dedos corriam em todas as direções costurando, medindo, remendando e esperando que as nossas roupas aguentassem.

Desde bem garotinho tive que ajudar na casa. Estávamos sempre precisando de cavacos para o fogão. Eu arrastava as lâminas farpadas pelas escadas do prédio e as empilhava num feixe no depósito. Eram três andares pra cima com os cavacos nas costas. A cada quinze dias chegava uma nova carrada. Com o tempo aprendi a desfrutar dos pequenos intervalos no abominável acima-e-abaixo por aquelas escadas. Depois de atirar mais uma braçada no terraço lá de casa, eu descia os degraus deixando que as pernas soltas me conduzissem como que transportado únicamente pela força da gravidade. Refazia-me no caminho antes de jogar um novo feixe nas costas. Eu terminava o dia com polpudos vergões nos braços e no pescoço. O fogão de mamãe consumia tudo que eu arrastava pra casa. Logo chegava a hora de encomendar outra carroça de cavacos. Era como a vida se abria para mim, mostrando-me o mistério de sua complicada repetição.

O momento ideal era enquanto o carroceiro estava jogando os cavacos na rua. Eu pulava para a carroça, puxava as rédeas, chicoteava o ar e ordenava ao cavalo que partisse: eia! eia! O cavalo esticava o pescoço querendo seguir. Eia! O cavalo resfolegava com os dentes trincados no freio e sacudia a cabeça parecendo confuso com as ordens que eu dava. A carroça permanecia travada no mesmo lugar. O cavalo virava a cabeça procurando enxergar o mal-feitor que o atormentava. Os olhos do bicho chispavam de ódio para mim. Era muito bom. Depois, eu é que puxava os cavacos. Eia! Meus irmãos eram menores e só eu aguentava o tranco. Eia!

Um dia o cavalo escoiceou o ar quando trazia uma nova carga. As patas traseiras acertaram como pedradas na carroça. Era uma advertência e o carroceiro avisou que daquela vez era melhor não brincar com o bicho. Mas eu não quis saber do conselho. Já levava nas mãos o chicote que o fustigava. O cavalo devia estar cansado daquela vida, de mim, dos cavacos e de que sei mais o quê lhe coubera por destino. Ele me acompanhou com o movimento da cabeça sem me perder de vista, enquanto eu passava de um lado para o outro diante dele desafiando-o com estalos do chicote. Decidiu intimamente que era a última vez que aguentava a humilhação que diariamente o obrigavam a suportar. O carroceiro se cansou de pedir e me ordenou que lhe entregasse imediatamente o chicote. Foi então que o cavalo julgou erroneamente o que poderia lhe acontecer. O carroceiro inclinou-se para pegar o chicote que eu lhe entregava. O cavalo preparou-se para receber a primeira fustigada. Ralou as patas com raiva no calçamento mas dessa vez o chicote não mordiscou o seu couro. Ao invés disso, o carroceiro continuou jogando os cavacos na rua diante do nosso prédio. Não era bem o que o cavalo esperava. Talvez a raiva que sentia por mim o houvesse predisposto a vingar-se de qualquer forma, ou o ódio simplesmente sobrepujasse todo o medo que sentia do carroceiro e do seu chicote.
O cavalo pegou um salto e arrancou a carroça do chão. Em seguida, disparou como flexa em linha reta. A carroça tombou e os cavacos se espalharam na rua como uma mortalha esfrangalhada. O carroceiro agarrou as rédeas, mas o cavalo estava cego de desespero e fúria e ninguém podia pará-lo. O bicho correu com o pescoço todo torcido para trás, enquanto a carroça se desmantelava em pedaços e mais pedaços. O carroceiro rolou de cara no chão.

O cavalo cruzou a primeira esquina, mas a segunda foi fatal. Com um estampido, mas que também era um estrebuchar lancinante, o cavalo arrombou um lotação exatamente pela porta. Lá dentro, ele se desmanchou numa avalancha de carne e ossos espatifados, engolfando os passageiros numa maré rosada, borbulhante e gordurosa. Em pânico os passageiros arrebentaram os vidros a ponta-pés para escapar daquela alucinação que subitamente viera interromper o seu itinerário. O cavalo morto fincava rigidamente porta afora as pernas traseiras paralisadas no impulso final do seu galope aterrador. Era como se ainda não soubesse que não mais vivia, e procurasse escapar da armadilha em que caíra.

Me pendurei numa janela arrebentada e vi a cabeça enorme do animal morto dentro do lotação. O interior era uma confusão de bancos retorcidos, vidros quebrados, pacotes perdidos, ossos, baba, pêlo e sangue por todo lado. Retiraram os feridos. Depois uma guarnição de bombeiros meteu mãos à obra. Não conseguiram tirar o cavalo inteiro lá de dentro e assim, ele foi retalhado à serrote. Mas não houve quem quisesse ficar com a carne do bicho pra comer.


6.

Era o dia inteiro puxando cavacos pra cima. A jornada começava numa longa escadaria que havia de vencer de uma só vez. Ao final do primeiro lance, eu tomava fôlego encostado no corrimão. A técnica era nunca largar dos cavacos, senão eles escorregavam e dava um trabalho danado recolher e jogar a carga de volta ao ombro. Eia!

Será que eu iria levar a vida toda só arrastando cavacos pra minha mãe? O inverno era árduo e os cavacos não chegavam. Todos passando frio e fome lá em casa. Aquela era a minha parte. Eia!

Nossa casa ficava no terceiro andar de um pequeno prédio de apartamentos. O primeiro andar era quase todo de uma companhia que produzia oxigênio comprimido em cilindros de aço. Os cilindros cheios de oxigênio ficavam alinhados em colunas e uma corrente passava entre todos, para, talvez, impedir que fossem roubados. Uma preocupação desnecessária; parecia impossível movê-los; seria preciso dois homens, de tão pesados. Quando golpeavam uns contra os outros durante o transporte, eu ficava arrepiado, com um medo instintivo da sonoridade do aço e do brilho enigmático daqueles vultos esguios e frios, que eu não conseguia levantar em meus braços.

A outra loja do prédio, era da barbearia do seu Tonico. Foi lá que fizeram as primeiras transformações na minha aparência. O barbeiro tinha ordens de pelar sem piedade. Meu pai descrevia como queria que o serviço fosse feito

O barbeiro escolhia uma das suas máquinas de ceifar. Eram quatro e ficavam dispostas sobre uma toalha branca, as quatro, como mandíbulas de metal esperando a hora de atacar o côco, que largavam no final só com uma touceira arrepiada no alto. O corte chamava-se príncipe Danilo.

Lá ia eu pro alto da cadeira, enquanto a mandíbula cliqueteava impaciente para atacar. Seu Tonico entortava o meu pescoço com força e começava. O chão ia ficando coberto de flocos negros. Eu via só a ponta dos meus sapatos. Amaldiçoando o príncipe, eu me agarrava aos braços da cadeira giratória e estremecia a cada beliscão das mandíbulas. A maquineta tosava com vontade e o cabelo arrancado despencava aos tufos. Só melhorava um pouco quando chegava a hora da navalha. A navalha vinha acompanhada do sabão gelado que escorria pela nuca como um bálsamo e então eu adivinhava que os meus tormentos estavam chegando ao final. Seu Tonico afrouxava um pouco a mão na minha cabeça, enquanto me rasurava com perfeição Meu pai conferia. Foi como conheci os rigores da realeza.

Ao final a toalha caía mostrando-me com a inconfundível aparência de um prisioneiro. Era como meu pai queria me impingir ao mundo. "Feito", assegurava o barbeiro com se terminasse de executar uma sentença. Concluía arrematando com talco perfumado; "está limpo!"

O corte dos cabelos é o início de uma cadeia inexorável de pequenos reveses que irão se acrescentando para constituir finalmente, uma personalidade. É o segundo momento traumático de nossa existência: o primeiro é o próprio nascimento. Em ambos, de um corte, encetamos a nossa relação dolorosa com o mundo. Cortar o cordão umbilical quer dizer: começar a viver ! Cortar os cabelos, começar a morrer ! É a maneira mais simples de entender como passamos de uma forma de vida para outra.

A cada nova remessa eu aprimorava minha técnica para galgar as escadas com os cavacos. Fui aprendendo a dispender a força exata para cada lance e chegar ao alto inúmeras vezes sem me esgotar. Primeiro devia remover os cavacos da rua para a área de serviço. Com as lâminas deitadas para trás, galopava degraus acima com a cauda estralejante de um cometa ordinário no meu encalço. Quando largava a braçada no terraço de casa, minha mãe aparecia para dar uma espiada da porta da cozinha. Os cavacos se acumulavam no terraço e não acabavam nunca na calçada lá embaixo.

A cada nova braçada, minha mãe parecia mais cansada, olhando da porta para o filho que ajudava a manter a sua família aquecida e alimentada. Depois, muito depois, lá pelo fim da tarde, eu começava a levar os cavacos para dentro do nosso depósito. Quando meu pai chegava do trabalho, todos os cavacos estavam de pé com a promessa de calor e vida para mais uns bons dias. Mostrava a tarefa terminada, já contando com que ele dissesse que eu não sabia fazer nada. Era uma vida e tanto. Só o meu pai é que não achava.

Era preciso deixar os cavacos em pé, como um batalhão de guardas prontos para a revista. Cada cavaco tinha o comprimento de uma tábua e eu lutara para erguê-los e mantê-los unidos, depois de haver lutado toda a manhã e toda a tarde para arrastá-los. Era uma delícia ver o depósito repleto, com tudo o que necessitávamos para viver. Os cavacos ocupavam o fundo do depósito. Prateleiras de madeira robusta subiam pelos lados, com as latas e as caixas da nossa despensa de comida.

As principais eram as latas amarelas de biscoitos, que tinham a estampa de um índio aymoré com o nariz perfurado por uma pena de cada lado. Era maravilhoso aspirar o cheiro da baunilha que emanava das fileiras e mais fileiras de biscoitos ordenados entre as tiras de papel manteiga ondulado, camada sobre camada, enchendo toda a lata.

Terminei de empurrar contra a parede a última braçada e apertei o feixe com uma cordinha. O nó escapuliu e os cavacos escorregaram por baixo. Quase não tinha mais forças para fazer um nó apertado.

Do apartamento vizinho chegava a voz italiana de Gina cantando um trecho de canção que ela repetia incansavelmente - ai... ai...tem un-má rosa que s’estai cravando, que s’estai matando em mio cuoraçón... - no dialeto particular das suas angústias perenes.

Uma fileira de aymorés me fitava com uma expressão dura e antipática enquanto a voz de Gina seguia dolorosamente cravando-me os seus aís! Côco, baunilha, chocolate e maizena. Não tinha waffles de que eu mais gostava. Escolhi côco. Me recostei na parede, trincando o biscoito em pedacinhos e deixando o farelo dissolver na boca sem mastigar. A parede estava embebida do calor do fogão que minha mãe mantinha vivo o dia inteiro. Eram ainda os cavacos da remessa anterior que ela estava queimando. O fogo sempre me deixava triste. A voz de Gina continuava com o seu timbre melodioso do Adriático e eu descansava num canto escuro rodeado de silenciosos aymorés.

A vida era dura, as casas eram pequenas, e tudo girava em torno da cozinha, onde as mães passavam uma existência de perenes fiascos. Gina era diferente de todas as mulheres daquela época. Tanto como apareceu, também sumiu da noite para o dia, sem que ninguém nunca ficasse sabendo para onde tinha ido. Ela era distante e concentrada, e parecia não haver o que pudesse fazê-la sorrir. Vestia sempre cigarettes pretas super-justas com camisas de mangas bufantes e usava o colarinho levantado atrás, de modo que com o cabelo curto e negro com um topete alto ela evocava de alguma maneira os modos provocantes dos transviados em todo lugar. O seu estilo desafiava o nosso, pequenino e medroso, cuja ousadia vinha com o ritmo dos discos da babulina, que ela ouvia bem alto todos os dias na radiola. Não sabíamos bem o que ela fazia da vida e este mistério a tornava ainda mais fascinante para mim. O sinal do seu desajuste (conforme minha mãe), se completava com os óculos escuros de aros negros e largos e uma lambreta cor-de-rosa e branca, com espelhos enormes de cada lado do guidon. Eu me deliciava quando Gina se preparava para mais uma das suas voltas misteriosas. Primeiro regulava os espelhos. Às vezes (péssimas maneiras), usava a manga da camisa para limpar alguma mancha que tivesse neles. Montava com as pernas abertas de cada lado da lambreta e jogava a cabeça para trás com o sol em cheio na face enquanto punha as luvas com os dedos à mostra e em seguida os óculos quase ao meio do nariz. A sua expressão tornava-se impenetrável. Vai, Gina, vai que ninguém assim jamais a alcançará! Então jogava o peso do corpo no pedal para dar a partida no motor. O pedal cedia com uma fumarada na descarga: Adeus, mamãe, adeus, Sheila, tô indo embora com Gina. Não fiquem esperando à toa. Já sabem que agora é inútil.


7.

Meti outro biscoito na boca. Não se preocupe, Sheila. Nunca que Gina vai me dar bola. Gina sumiu levando uma rosa suicidada em seu coração. Adeus, Gina. Adeus.

Empurrei cuidadosamente com o pé um cavaco que teimava em sair da linha e s'etaí cravando em meu coração. A madeira recendia os bosques de onde tinha sido arrancada. Agora ia desaparecer no fogo, uma parte de mim ia se transformar nas cinzas frias que se acumulavam abaixo da grelha do fogão. Fechei a porta deixando para os aymorés o resto da floresta que sobrara no fundo da despensa. No fogão, mamãe seguia na sua labuta conforme o ritmo indiferente da história.

O jantar ia ser carne assada com purê e molho. Fui para o quarto. Estou moído, Sheila. Foi o dia todo contra os aymorés. Eles venceram e esta noite não haverá fogo. Vai fazer muito frio. Venha pra cama e fique quietinha comigo.

Do meu quarto eu podia ouvir os outros meninos gritando e correndo na rua. Estavam brincando de polícia e ladrão. Ao cair da tarde as sombras ocultavam bandidos e mocinhos. Eu não conseguia prender ninguém e quando era agarrado, não tinha forças para me desvencilhar e fugir. Preferia brincar sozinho na oficina de rádio do velho Alfredo.

O velho Alfredo me deixava brincar com antigos aparelhos e instrumentos que zumbiam, enquanto eu perseguia alguma onda que estivesse perdida no éter. Naquela época, a pseudociência profetizava que as imagens e os sons produzidos no passado circundavam a Terra como se estivessem "em conserva" e intactos na forma de freqüências que podiam ser rastreadas como peixes magnéticos. Algum dia no futuro seriam novamente apanhados. Tais mistérios enchiam a minha imaginação. Eu me encerrava horas a fio atrás daqueles sons perdidos, que subsistiam numa onda extraviada. Me servia dos antigos e ásperos fones de telegrafista que o velho Alfredo utilizara em seus tempos na estrada de ferro.

Como no vôo cego de uma nave comandada por instrumentos, eu tentava adivinhar o mundo que a minha imaginação ia produzindo. Me orientava com um esgotado rádio galena nas minhas sondagens espaciais. Bastava que estendesse a mão e movesse a agulha sobre o mostrador para que imediatamente minha fantasia comandasse os acontecimentos. Abria e fechava as passagens de um Universo pleno de emoções, na companhia do meu companheiro, o capitão Buck Rogers! Buck, ficamos aprisionados num campo de extrema densidade magnética! Vamos ser aplastrados!

A ação era acompanhada de frases curtas e de zumbidos da glote. A espaçonave quebrava a barreira da luz. O comandante intergaláctico empreendia ousadas manobras de evasão. Eu desfalecia com enjôo espacial. Preferia olhar para os mostradores. Tentava prevenir Buck de uma possível colisão. Te devo esta, velho Buck! Você vai ser o nosso padrinho de casamento! Tinha sido uma idéia de Sheila.

Resolvi começar as minhas buscas pelos sons do incêndio da Biblioteca de Alexandria. Até aquele dia, o culpado nunca fora encontrado. Imaginei o incêndio da nossa Biblioteca Pública. Eu amava a Biblioteca Pública, mas detestava D.Rosi, a bibliotecária. Ela também era a mãe de Sheila. Até aquele dia, nunca se tinha visto D.Rosi com um livro nas mãos que não fosse para guardá-lo imediatamente. Para ela, os livros deviam permanecer eternamente alinhados numa prateleira. Ela esperava impaciente pela hora de fechar a biblioteca, quase enxotando os leitores. Momentos antes, arrancava das mãos os livros que estavam lendo e prontamente os recolocava na ordem costumeira para a qual, supunha, haviam sido concebidos. Um dia, fiz um comentário sobre o incêndio de Alexandria. Ela não tinha ouvido falar. A antiga Biblioteca não era mesmo o seu problema. Mas ficou irritada com o que eu lhe contara. Como fumava um atrás do outro, cigarros sem filtro, entendeu que eu, um gurizote, a estava advertindo sobre os riscos que a Biblioteca corria com os seus cigarros. Saiu rosnando e foi verificar a validade dos extintores de incêndio espalhados pelo prédio. A partir daí, tornou-se minha inimiga declarada. Tentei mostrar-lhe que o incêndio havia sido na Antiguidade e, ademais, intencional! Não consegui aplacar o seu rancor. Senti o terreno perigoso. Como aquela história do rio ainda podia voltar, desapareci da Biblioteca por uns tempos.

Fechava-me na oficina de rádio do velho Alfredo. Passava dias inteiros trancado lá dentro, pensando em Sheila e procurando Alexandria. Naquele cubículo, restos de aparelhos de válvulas conviviam com coleções de antigas revistas técnicas, criando uma atmosfera recôndita e misteriosa e, ao mesmo tempo, pacifica e terna, como se as vozes, que um dia vibraram naqueles instrumentos, esperassem para retornar ao mundo que haviam abandonado. Nesta época eu não sabia que todas as coisas sempre acabam e que tudo também chega a um final.

Os meninos corriam furiosamente ao redor da oficina entre gritos de guerra e pancadas. Eu corria para salvar D.Rosi, cercada pelas chamas por todos os lados. A Biblioteca era uma tocha na noite da Antiguidade. Entregava D.Rosi sã e salva para a sua filha, caindo uma nos braços da outra. Sheila, com um olhar de gratidão, me dava um beijo demorado na boca. Nossas línguas se enroscavam. Pedaços da Biblioteca desmoronavam por perto. O cenário era grandioso. Estava perdoado pelo atrevimento no rio.

Dona Rosi lavada em lágrimas, arremessava com força o maço de cigarros ao meio das labaredas. Tinha sido por descuido seu que o fogo se propagara. Os extintores estavam fora da validade. Não ficava bem claro para mim, se esse era o motivo pelo qual ela estava chorando. Depois ela se virava em minha direção com os braços abertos. Ela também está querendo ser beijada! Sou forçado a empurrar D.Rosi de volta às chamas.


8.

Foi no primeiro dia de férias de um verão quente e libidinoso que as trevas venceram a luz.

A visão do meu membro empinado havia assustado Sheila, fazendo com que ela fugisse, e eu, não menos assombrado, me escondesse. Isto não significava, por outro lado, que o mistério fôra desvendado. Bem ao contrário, o mistério mal começava. Só que Sheila não permitira que fosse eu o felizardo a descerrá-lo.

Depois de vagar pelo antigo campo dos ciganos, no encalço das almas perdidas para juntar-me a elas, pus-me a caminho, por não encontrá-las ali, da antiga base aérea que os americanos construíram durante a segunda guerra mundial. A base não teve nenhuma importância estratégica. Restabelecida a paz, arriaram a bandeira e foi abandonada. A pista começou a ser usada para corridas de carreteiras, antigos carrinhos quase caindo aos pedaços, com vinte, trinta ou mais anos de uso, todos a caminho do ferro-velho. Antes, aprestavam-nos ao derradeiro desafio, ao último alento, antes de virar sucata.
Todo o metal sobressalente dos pára-lamas, portas e capôs era removido da carroceria e substituído por uma carcassa de lona, à fim de eliminar o máximo de peso. Sacrificava-se, assim, qualquer estabilidade que por ventura pudessem ainda ter sobre a areia e o saibro. Ganhavam, por outro lado, mais um componente de risco, porque a lona embebia-se no óleo e queimava facilmente.

Das cabeceiras da pista partiam ramificações que se sucediam como num longo e imbricado caminho de ratos. As passagens não eram mais do que armadilhas que confundiam os oponentes, dispersando-os aqui e aglomerando-os novamente adiante, o que provocava inúmeras colisões, capotagens e ferimentos nos corredores. O piso não passava, em alguns trechos, de uma rala cobertura de asfalto, cuja única finalidade era produzir maior velocidade antes do próximo choque.

Confundidos com o terreno áspero do deserto e com a poeira que ocultava as armadilhas do terreno, os carrinhos atiravam-se numa trovoada furiosa uns contra os outros. As provas, mais do que competições, eram duelos. E os pilotos, encarniçados gladiadores.

Correr na frente era a única maneira para escapar dos pedregulhos e pedaços de metal que a tração das rodas arrancava do solo e atirava contra os retardatários. Resvalavam e rodopiavam, engavetados nas ramificações mais estreitas. Iam largando durante o percurso talhos de metal, tiras de pneus, peças de motor e derramando combustível, que se inflamava. A fumaça das combustões se misturava com a poeira que caía formando crostas encardidas no campo. Quando vinha a chuva, a terra virava um creme pantanoso.

O sadismo dos organizadores era suficiente para não remover todo aquele lixo. Deixavam uma quantidade destinada a retalhar a seguinte leva de aventureiros.

Quando as carreteiras completavam o percurso e assomavam ao final da pista construída para os bombardeiros de guerra, vinham quase em frangalhos, como no final de uma batalha, engolfadas como uma matilha enraivecida, da qual a mais delirantemente aplaudida não era a primeira a chegar, mas a carreteira que mais feridas ostentasse.

Com o tempo, em torno da pista se estabeleceram negociantes de ferro-velho. A área rapidamente se povoou daquela humanidade que nutre-se dos restos que os outros deixam. Catavam, separavam, classificavam e depois revendiam toda a gama de coisas imprestáveis, nauseabundas e hediondas, às quais normalmente não se atribui nenhum valor. O lugar também passou a ser utilizado como vazadouro de lixo e daí transformou-se numa espécie de covil de degenerados e violentos. Qualquer um lá tinha acolhida ou, pelo menos, discrição. Não era incomum deparar com algum cadáver jogado entre os montes de lixo. Ficava insepulto até que alguém se lembrasse de fazê-lo sumir no mais completo anonimato. Era o que dizia meu pai, contando com isso manter-me assustado, o seu bom filho bem afastado de lá.

De certa feita, dei naqueles lados com meu pai. Procurávamos um tubo de bronze que ele queria não-sei-mais-pra-quê. Instruiu-me quando nos aproximávamos para manter todas as janelas fechadas. As moscas espreitavam às centenas sobre os vidros do nosso automóvel. Foi quando vi as carreteiras em disparada, investindo umas contra as outras. Quis chegar mais perto. Toda a região era um só tumulto de máquinas, ferramentas, pessoas e animais. Homens, mulheres, crianças e velhos escavavam, separavam, amassavam, pesavam e empilhavam todo tipo de traste: vidros, pedaços de plástico, latas, ferro e papelão. Mostravam afinco, como formigas trabalhadoras. Meu pai ordenou manter as portas trancadas.

Eu era novinho, minha carne era tenra e em meu sangue corriam açúcar e leite em abundância, como para transformar-me numa iguaria. Se os insetos pudessem me alcançar, com certeza não me largariam antes de sugar a última gota saborosa.

Vi meu pai correndo esbaforido de um trapeiro para outro. Procurava o tal cano de bronze. Rodeava-o um bando de molecotes. Não o largavam e lhe ofereciam, açulando-o, todo tipo de cano e pedaço de metal que possuíam. Atormentavam meu pai, encurralando-o, enquanto ele procurava desviar-se dos pequenos demônios. Agarravam-no para atraí-lo, pendurando-se em suas roupas, como se quisessem mesmo impedi-lo de caminhar. Certamente, havia uma inequívoca intenção de destituí-lo de tudo que possuía sobre o corpo e dentro dos bolsos. Finalmente abriram um talho enorme no seu paletó.

Meu pai era um homem formal, rigoroso em seus hábitos e sem ambigüidades nos procedimentos mais banais. Com isso, deixava muitas vezes que a cautela fosse suplantada pelo ímpeto de seu asco para com qualquer comportamento obtuso, que apontava como herança atávica nas mais baixas camadas da humanidade. A miséria, ao invés de penalizá-lo, enfurecia-o. Conseqüentemente, parecia-lhe mais do que justa a condição inerme a que tais infelizes estavam condenados.

O rasgão pusera-o furioso. Considerou o acidente como um desafio, e esquecido dos riscos que sua atitude poderia acarretar, procurava o culpado. Agarrou a esmo um pequenote e ergueu-o com o evidente intuito de castigá-lo. Era como se este direito lhe pertencesse por uma condição natural. Os trapeiros instantâneamente largaram os sacos onde amealhavam lixo e o rodearam. Rosnaram ameaçadoramente como uma alcatéia. O moleque voltou rápidamente para o chão. Meu pai, com gestos dramáticos, mostrava o paletó. Estava perdido. Os miseráveis não queriam saber do seu insignificante desastre. No ponto de vista deles, a roupa era perfeitamente aproveitável. Meu pai deixou pender os braços desanimado. Estava frito. Foi então que, não sei se compreendendo bem o que se passava - como numa inspiração! - abri a porta e corri em sua direção. Mal saltei do carro, a chusma alada revoluteou no meu encalço e cravou-me os ferrões. Na mesma hora, o pescoço e as orelhas empolaram. Aos gritos, empurrei as pernas que rodeavam meu pai e atirei-me nos seus braços. Ele me ergueu como à um escudo. Minha cara estava desfigurada numa equimose escaldante. Enfiei a cabeça entre os trapos do seu paletó e implorei aos berros que me tirasse logo dali. Era do que ele precisava para escapulir.

Protegendo-me dos insetos, - e eu a ele - corremos para o automóvel. Entramos juntos num salto e ele girou a chave enquanto eu travava as portas. Escapamos sob uma chuva de pedras que ribombou de todos os lados na lataria. Só quando ultrapassamos os barrancos que ocultavam o vazadouro e a pista e atingimos a estrada, muito longe dali, foi que ele voltou a respirar.

Meu pai empalidecera e me apertava ao seu lado no assento. Esperava que ele dissesse alguma coisa. Afinal, se não fosse por mim, com certeza bem o teriam sovado! Mas, ao invés de estimular a minha precoce valentia, passou a considerar os riscos a que tinha me exposto ao saltar do carro. Distraído, ou não querendo admiti-los, não considerava que os perigos que arrostáramos, eram, isso sim, por ter ele se metido naqueles arrabaldes.

Desliguei-me do que dizia e dei-me a pensar sobre os inimigos: como teria adorado juntar-me a eles, apesar dos mosquitos - conquanto sem as peias sufocantes da minha educação privilegiada!

Dentre todos, ficara-me a imagem das roupas puídas de uma menina, já quase uma mocinha, que corria segurando pela mão o garotinho que meu pai quisera castigar. Ela percebera a manobra com que momentaneamente tinha-os logrado e agora procurava alcançar o carro para se vingar com um vergalhão retorcido e enferrujado. Meu pai dirigia mal e era ainda pior quando tentava escapar. Os solavancos, os arbustos, o lixo e as poças d’àgua nos impediam de progredir rapidamente. Se não fosse pelo gurizote que ela arrastava pelo braço, facilmente teria nos alcançado. Por sorte, embora supondo que não conseguisse quebrar um vidro e ainda nos ferir, o que, a meus olhos, não teria diminuido o seu valor ao caçar-nos, tropeçou, perdeu o equilíbrio, caiu e nos distanciamos. Abri o vidro e pus a cabeça para fora, esquecendo-me das picadas nas orelhas. De joelhos sobre o banco, deitei o arremedo mudo de uma risada debochada e cínica para espicaçá-la. Meu pai sem afrouxar o pé no acelerador puxou-me rudemente pela camisa para dentro e girou a maçaneta para fechar o vidro. O carro saltava e sacolejava sobre as próprias molas, no que ele quase nos joga para fora da estrada. Me desequilibrei e cai de costas no assento. Gritei para que diminuisse a velocidade ou íamos capotar. Ele rugiu raivosamente procurando consertar o rumo, como se o volante não obedecesse às mãos frenéticas que o agarravam. Quando me levantei e olhei pelo vidro traseiro, ela erguia o braço mas desta vez ria e acenava longamente, enquanto a sua figurinha maltrapilha diminuía, diminuía, até desaparecer no fim da estrada.

O aceno dela foi como um sinal para mim.
Compreendi que éramos, por assim dizer, da mesma estirpe.


9.

Era o primeiro dia de férias de um anjinho extraviado.

Arrastando os pésinhos dormentes, o anjinho continuava fugindo. Era um anjinho torto e desmiolado.

Observando cuidadosamente em volta, como se um perigo pudesse inopinadamente o atacar, certificou-se de que estava absolutamente só. Sem pressa, resolveu parar um pouco e descansar.

Atraído pelo emaranhado de ramos que brotava ao redor do caminho, buscou uma touceira menos batida pelo sol, a mais verde e a mais fresca. Atirou-se sobre as hastes flexíveis, deixando que elas o amparassem gostosamente, sem pensar nas cobras ou insetos que pudessem estar escondidos na folhagem. Sentiu como vergavam sob o peso do seu corpo, por elas imediatamente absorvido. A sensação era de que boiava no âmago sonolento de uma onda paralisada.

No interior daquele corpo filiforme eu dormitava. Sonhava. Vegetava.
Quando dei por mim, já resvalava para o fundo do berço de ramagens. Procurei agarrá-las, como se pudesse, atirando as mãos de uma haste para outra, que me abandonavam, erguendo-se uma a uma, impulsionadas para cima de repente, como um leque se armando, me afogando.

Não posso afirmar se sabia o que estava acontecendo. Talvez tenha sido uma alucinação. Entretanto, o estado em que depois me encontrei teve a ver exclusivamente com os fatos que se passaram no instante que sucedeu ao sonolento torpor em que agora me abandonava. Era como se pisasse numa terra de sonhos, incapaz de encontrar qualquer coisa sólida em que me apoiar. Senti o mesmo principio de pânico quando, certa vez, muito pequeno, me vi apanhado entre as dobras de uma rede em que me puseram para dormir. A rede se torceu comigo dentro e me aprisionou no seu interior. A sensação era a de que me engoliam vivo e não podia escapar.

Era o primeiro dia de férias de um verão quente e tempestuoso. Barcos perdiam-se no mar, enquanto náufragos lutavam para não afundar. Como eu mesmo lutava, nesse momento engolfado por um oceano verde e sem ondas, mas não menos traiçoeiro e ameaçador.

Foi quando a avistei. Ou ela a mim. Ou, talvez, nem isso, mas ao relance inesperado dentro da ramagem. Enquanto bracejava para me desvencilhar do turbilhão que me arrastava para baixo, uma cabeleira loura brilhou como um farol em cuja direção, na verdade, eu nunca deveria me dirigir. Aprendera em narrativas de antigos aventureiros, que são perigosas tais visões ofuscantes e inesperadas.

Devo ter assustado aquela sereia, porque ela se virou precavida com o que pudesse vir de dentro do capinzal. Levantei-me temeroso de que não me vendo, ou tomando-me por outro, mais perigoso, quisesse fugir e se esconder. Como supûs, ela não deu nenhuma importância logo que me mostrei entre as ramagens. Esfreguei capim para tirar dos joelhos uma grossa camada de barro. O que fiz, foi espalhar mais sobre as pernas aquela massa grudenta, piorando ainda mais a minha aparência. Um silêncio apático veio se interpor entre nós, só interrompido pelo macio farfalhar do capinzal como um murmureio entrecortado. Tive a impressão de que alguém nos observava dentre as moitas. Esperava, talvez, para ver o que eu faria e rir em seguida do que viesse a acontecer.

Ela vestia um folgado macacão de brim anil enrolado até o meio das canelas. O macacão era de um número muito maior que o seu e as mangas igualmente estavam enroladas acima dos cotovelos. As mãos e os braços, mostravam-se inteiramente cobertos de graxa...

Comecei a descascar o lábio inferior. Vivo com os lábios feridos de tanto arrancar a pele. A sensação é de que os lábios estão sempre inflamados. Tenho medo de que as feridas nunca cicatrizem. Mas arranco a pele sempre que estou ansioso. Como vivo ansioso, as feridas nunca saram. Ás vezes me aproximo da cura, mas, sob o impulso de um ínfimo acidente psicológico, que momentaneamente me desnorteia, com uma dentada precisa sobre uma rugosidade, atiro fora o tempo que esperei para recompor o machucado. Assim o ciclo recomeça e eu não saro nunca. Quem haverá de querer um dia lábios nestas condições para beijá-los?

Não sei como foi que ela apareceu. Naquele trecho a estrada não fazia nenhuma curva para a ocultar de mim. De onde eu estava era possível avistar tudo o que aparecesse no meio do capinzal. Mas agora, como um produto da minha imaginação, havia um carro parado que deitava para o alto um rolo de fumaça negra que escapava do motor. Entre as rodas, estirada de costas no chão da estrada, uma moça se arrastava para baixo do carro. O número "19" havia sido pintado com algarismos pretos de cada lado do verde desbotado da lona da carroceria. Só a capota era original. O resto desaparecera, sem deixar um claro indício do modelo ou da marca que tivera algum dia. Recortado para o ferro-velho teimava, entretanto, em manter-se vivo. O retinir insistente das ferramentas sob o chassis não deixava dúvidas sobre a dura tarefa requerida para conseguí-lo.

Ela golpeou repetida e vigorosamente, embora tivesse pouco espaço para movimentar os braços. As pernas resvalavam sobre si mesmas, torcidas numa resistência inútil diante da própria força que ela fazia e que agora a subjugava sob o monstro. Os calcanhares dos seus tênis gastos inscreviam na poeira a caligrafia de todo aquele esforço. Era como se o monstro que já a tivesse devorado pela metade. Ficaram somente as pernas de fora, debilmente à procura de um apoio em que pudesse firmar os pés e em seguida escapar.

"Está quebrado?", perguntei com voz cândida, como se motores fossem mais uma das minhas especialidades. As pernas chutaram o ar com raiva e a cabeça apareceu em seguida. Parecia ter-se livrado de uma força que a estava esmagando. "Não faça peso sobre o carro!", gritou com a voz estrangulada no esforço de movimentar alternadamente duas chaves inglesas, fazendo uma porca grunhir pesarosamente na rosca a cada volta. Tirei fora as mãos que inadvertidamente apoiara sobre a carroceria. O capinzal estremeceu numa risadinha.

Ela ergueu bem alto uma perna no ar como se tirasse de sua matéria intangível o apoio que faltava para vencer o oponente, e a porca por fim cedeu com um guincho lamuriento. Depois calou-se. O capinzal pestanejou ciciante.

Com os cotovelos, ela tirou o corpo debaixo do carro. "O quê é que você tá querendo comigo, guri?", resmungou batendo a palma das mãos nos fundilhos bambos do macacão. Esgarçou uma estopa rala e visguenta. Esfregou sobre as costas das mãos. Tornou a agregar os fiapos. Em seguida esfregou a estopa nas unhas mas a graxa não saia dos dedos. O capinzal mantinha a respiração suspensa. "Vivo pelas redondezas", repliquei, sem me mexer nos meus calcanhares. "Resolvi dar uma volta. Queria nadar", completei, dando o tom mais casual possível às minhas palavras. "Ham-ham", ela devolveu, não me deixando saber no que estava pensando.

Havia naquele encontro uma mescla de ternura com tristeza e ingenuidade, talvez pela própria eventualidade que nos reunira e que agora nos decepcionava. Ela continuava largada no chão como uma mancha turva dobrada sobre si mesma e recuperando o fôlego. Eu não sabia o que dizer ou fazer depois das breves palavras que trocamos. Ela parecia pequena e derrotada, embora fosse maior e mais forte do que eu. Agora, sentia-me incapaz de ajudá-la.
A isto chamam de "realidade" , seja lá o que queiram nos fazer entender com tal palavra.


10.

O ar estava saturado de monóxidos. Um cheiro pesado, adstringente, mesclava elementos químicos com o odor adocicado de matéria orgânica decomposta e estancava a própria respiração. O vento que trouxera a nuvem malcheirosa, agora não mais soprava. Lá em casa devia ser quase hora da comida ir pra mesa
"Vem cá, dá uma mãozinha aqui!", a voz chegou de alguma parte atrás do carro. Virei-me num pulo. Ela estava de pé com a cabeça inclinada para o lado, o que diminuía seus modos bruscos e derramava uma gota de doçura na sua figura desengonçada. Não era muito alta e o cabelo, curto e desgrenhado, parecia um trigal começando a brotar. Entretanto, não era feia. Os dentes da frente, grandes e separados, davam-lhe uma expressão ligeiramente divertida, como se houvessem lhe contado algo engraçado. Franziu os lábios procurando o riso como se isso fosse algo incomum ou perdido d'entre as expressões da sua face.

Sem me dar tempo de responder, e possivelmente rindo-se da surpresa que produzira, mostrou o que eu deveria fazer enquanto ela cuidava do motor. "Só quando eu mandar, certo? Tá vendo o botão prateado aí na frente?"
No painel, um botãozinho reluzia solitário. Não podia me enganar. Aquilo eu conseguia! "Sei qual é", retorqui, já com as mãos no volante. Meus pés não alcançavam os pedais. Melhor assim, eu não podia fazer nenhuma besteira.
Ela meteu de novo as mãos no motor. Projetou-se para dentro do capô aberto. A voz veio do fundo, estertórea como da outra vez: "você está pronto? Veja lá, não mexa em nada antes de eu mandar!" Eu estava com um dedo apoiado na partida e aproveitei a espera para arrancar mais um fiapo de pele do lábio. O lábio ficou latejando. Dei uma olhada no interior. O fundo do carro tinha-se ido e a terra nua aparecia sob os pedais. Atrás do banco havia um caixote de madeira com ferramentas e peças de motor. Dali retirei o capacete. Acima da viseira havia um nome: "Katja". Repeti-o para mim: `Katja! Katja'. Senti o movimento das sílabas em minha língua como um pequenino peixe fisgado que saltava e depois se acalmou. Levantei o capacete sobre a cabeça e quando me aninhei lá dentro, meus olhos se fecharam. Dirigir não era nada complicado... era a melhor coisa da vida... era a coisa mais fácil de se fazer na vida. Minhas mãos invertiam-se como dois patinadores circulando ao redor do volante. Por vezes juntas... às vezes soltas... era só deixar me levar... curvas à dentro... curvas à fora...

Um estampido seguido do gélido retinir de metal contra metal e um berro. Todo o carro estremeceu pregando um salto desengonçado sem sair do lugar, como se um soluço houvesse escapado daquele organismo enferrujado. Ela pulou para trás para não ser apanhada pela tampa do capô que desabou com estrondo. "Puta que o pariu! Você enlouqueceu?"

Eu empalideci. Ao tentar alcançar os pedais, inadvertidamente havia premido o botão e quase provocava um desastre de conseqüências graves. O capô podia ter-lhe esmagado a espinha como uma mandíbula que a houvesse aprisionado.
Ela agora me examinava a cara com seu rosto chegando bem perto do meu. Os seus olhos estavam arregalados esperando, talvez, que eu tivesse alguma justificativa para o meu desatino. Mas não tinha nenhuma. Envergonhado, retirei o capacete da cabeça.

Momentos antes julgara-me um ás da velocidade e agora, mudo, cabisbaixo, fitava meus joelhos de criança sem dar um piu. "Como é que pode, guri?" A voz dela veio ciciante e perigosa e era evidente que não desejava nenhuma resposta. Qualquer uma a enfureceria ainda mais. Preparei-me para outro round. "Então quer brincar comigo, heim, sacaninha? Saia já daí, vamos! Fora!" Senti que o meu cérebro deixara de funcionar. Sem sair do lugar, retirei o capacete da cabeça. Ela arrancou o capacete de minhas mãos e o arremessou com fúria de volta ao caixão. Uma mancha escura apareceu em sua face, que agora tingira-se de um profundo tom marrom, sob as gotinhas de suor que salpicavam a pele como uma erupção se alastrando.

Quando ela levou o braço novamente para dentro do carro, eu instintivamente me encolhi no fundo do banco. Se ela percebeu minha reação não demonstrou nada, porque apenas alcançou uma mochila de lona que estava pendurada numa barra de ferro no teto sem forro, atrás de minha cabeça.

Seus olhos chispearam como duras chamas azuis, até que uma terceira chamazinha rubra veio se imiscuir entre aquelas duas. Ela acendeu um cigarro e assoprou dentro dos meus olhos a primeira baforada do seu desprezo.
11.

Naquele tempo, as mulheres que fumavam raramente habitavam nossas casas. Dona Rosi, em tal caso, não contava. As mulheres que nos fascinavam viviam nos filmes, atirando baforadas de soberba ou de sedução. Eram geralmente perigosas e o cigarro era a marca do pecado.

Desviei o olhar sem coragem para encarar Katja novamente. Ela foi sentar no chão, dando as costas como se nunca tivesse me visto, como se até a minha presença no banco do seu carro de corridas lhe fosse completamente indiferente.

A fumaça azulou súbita e fluida em seus lábios, antes de evaporar. Eu a amava ainda que ela me desprezasse. Ela parecia uma pequenina espiga que aflorava, tateando o espaço, enquanto lentamente emergia do entrelaçado invólucro tecido ao seu redor, que a empurrava para fora e que se abria todo para mostrá-la para mim, Katja! Katja!

Eu a havia encontrado, mas havia também começado muito mal. Katja não me amava; mas por ela, eu seria capaz de qualquer coisa, contanto que depois eu pudesse desabotoar por inteiro o seu macacão e pusesse lá dentro os meus dedos. Agarraria um dos seios, que traria para fora e beijaria, e depois ao outro que esmagaria. Enquanto isso ela me sufocaria na nuvem prateada dos seus cigarros. Saí do carro como se tropeçasse nos meus pensamentos.

Bem via como ela estava desapontada. Apoiou as costas na carreteira, enquanto riscava um arabesco no solo com o fósforo apagado, como uma obsessão que repassava continuamente. Ela não estava olhando para mim. Quando saltei do assento do piloto, notei como se afastava raivosamente, não tanto para me dar passagem, mas sim querendo se esquivar, enfurecida pelo meu indesculpável fracasso. Eu não sabia fazer nada.

Não podendo mais sustentar aquela situação, não podendo dominar-me, virei-me com a respiração suspensa, pronto para atirar-me a seus pés e suplicar por perdão. Eu não queria me separar mais daquela desconhecida que me atraía! Por sorte, no momento, ela não podia se mover - o carro partindo e deixando-me para trás...

Com um peteleco, a guimba foi despachada para longe e se volatilizou numa curva que não vi onde terminava. O ar já não fluía para meus pulmões. Meu short azul combinava com a cor do macacão dela, o único elo que perdurava. Era como se eu houvesse chegado ao final de uma jornada, só que a perdera, ao invés de conquistá-la. Ela não reagiu aos meus movimentos. Seu ânimo havia-se esvaído. Achava-se desamparada, tendo apenas um menino inútil como companhia.

O trecho onde estávamos ficava sobre um platô, antes do vale arenoso que aparecia ao longe. Lá, o ar estava carregado de eletricidade, como se o atrito das moléculas na atmosfera produzisse chamas e cintilações. Eram os incêndios espontâneos do gás que brotavam nos montes de entulho em decomposição. A nuvem de fuligem encobria os detalhes da paisagem, mas eu sabia que no vale pululava a multidão esfarrapada revirando o lixo e arrebanhando o que ainda pudessem encontrar para viver. Lá estavam também os carrinhos, como o dela, que agora se recusava a partir, como se a explosão que eu produzi houvesse exaurido o último lampejo de energia que possuíra.

Ela arrebanhou as ferramentas espalhadas e as atirou de uma só vez no caixote. Depois foi para o outro lado e pôs-se de cócoras atrás do carro para não ser vista. O vento encrespou novamente as pontas do capinzal. Achei que não devia olhar e me virei. Sem me mexer esperei, orelhas em pé, como um cãozinho fiel, julgando captar alguma coisa que o vento poderia me trazer. A nuvem sobre o vale se esgarçou um pouco deixando à mostra a terra batida e queimada como uma crosta que houvesse se espalhado depois de uma erupção.

Pequeninas na distância, se viam as carreteiras na pista de corridas, esta não mais do que um traço inseguro, embora retilíneo, prestes a desaparecer, apesar de concreto, em que pululavam pitadas de cor como pulgas amestradas, inexplicavelmente desmioladas. Ela era uma daquelas pulgas, só que agora estava perdida e não podia mais voltar ao lugar onde viviam.

Quando retornou, trazia outro cigarro pendurado nos lábios. Tirou o cigarro e meteu o fósforo riscado entre os dentes. Mordiscou o palito enquanto o cigarro queimava inutilmente na mão. Deu uma tragada, que expirou longamente como um suspiro. Lembrava-se remotamente de ter sido criança, mas aquela época se extinguira rapidamente. Não sabia mais como tinha vivido. Lembrou de ter partilhado algumas vezes um prato de comida, mas não das feições com quem estivera. Nunca lhe sobrara tempo para olhar para trás e lutara para chegar onde estava agora. Não era muito, não era nada, mas se mantinha viva. Haviam-na deixado ferida, porém não estava abatida. Não se dava por vencida facilmente.

Agregara-se ao circo de calhambeques. Antes disso, teve um caminhão e trabalhou para uma companhia de mudanças. Pensara na época viajar e conhecer o mundo, mas um moreno a levou à loucura. Enquanto se entregava a ele, a mobília que devia entregar foi saqueada. Quando a polícia pediu a descrição do tipo, recusou-se a entregá-lo, pensando, por amor e com orgulho, poder recuperar sozinha o que lhe haviam roubado.

Foi atrás, mas o namorado já havia evaporado. Arrependeu-se, mas isso também já era tarde. Se bem que não puderam culpá-la diretamente, logo descobriu que não tinha mais onde buscar trabalho. Um dia, quando a sua sobrevivência estava restrita às sobras que podia obter unicamente nas portas das cozinhas de restaurantes de estrada, deixou-se levar, embora isto a tenha feito chorar copiosamente ao princípio, ainda que ela o ocultasse amargamente, entortada pela cachaça que um mecânico passou a lhe fornecer, contanto que ela aceitasse trepar na lona dura que ele estendia por leito sob a carroceria de sua camionete por algumas noites nas estradas. A viagem terminou na antiga base aérea e agora faziam cinco anos que entrara para o circo de calhambeques. Como quase todos ali, cavou antes nos montes de lixo até juntar o dinheiro para entrar de “sócia” numa carreteira armada no chassis de um Ford ‘46 com o bloco do motor rachado. Quase nunca vencia as provas e tinha de dividir o que conseguia de vez em quando. Como as vitórias eram raras, ela demonstrava mais agressividade e revidava impiedosamente sempre que alcançava um oponente. Um dia venceu uma aposta e tornou-se finalmente proprietária do seu próprio carro. Daquela forma, ia fazer vinte e seis anos.

Entretanto, o permanente estado de alerta para sobreviver naquele mundo rude, acabara por endurecer as suas feições. Ela aparentava mais idade na forma com que vestia o sempre o mesmo macacão de trabalho que deixava propositalmente sujo, tanto como fizera desaparecer a cabeleira com um corte rente ao crâneo, temerosa, talvez, de exibir a fragilidade que a constituía, não tanto por ser mulher, mas por temor de não poder reagir às brutalidades que a atingiam.

Eu percebia apenas que uma menina carrancuda estava diante de mim. "Nós dois bem que podíamos empurrar o carro. Pega a direção, que eu toco atrás". Durante toda a vida ela jamais havia recebido um favor que fosse. Nunca! Nada de ninguém, sem que tivesse que pedir antes, ou, quando ofereciam, era por que esperavam obter algo em troca. Tal foi o que aprendeu por “relações humanas”. Este conhecimento fôra nítido e doloroso, mas não havia como escapar. O outro jeito, era lutar pura e simplesmente sem demonstrar as dores e o sofrimento quando perdia uma parada. Em ambas, suprimira totalmente a exibição de qualquer emoção que pudesse querer aflorar e reluzir em seus olhos, aparecer em seus lábios ou mostrar-se no tremor das suas mãos.

Mas ele era só um garoto comprido, raquítico e com as costas curvadas demais para que pudesse oferecer qualquer perigo. Pesou-o com o olhar. Poderia vencê-lo facilmente numa luta, se quisesse.

E ele, sem saber o que fazer depois daquela proposta absurda, e sem levar em conta que naquele momento Deus não estava do seu lado e poderia muito bem querer aplicar-lhe outra lição, jogou toda a força dos ombros contra a carcassa, como se pudesse, unicamente com as mãos, arrancar o carro do solo.

Conseguiu que as rodas se movessem por um milímetro, imperceptivelmente. Ela percebeu que aquele menino o teria conseguido, mesmo com o freio travado. De repente, com um solavanco, uma roda livrou-se de um pedregulho e a carreteira deslizou facilmente por alguns metros na terra socada da estrada. "Vamos!", ele berrou esticando-se todo, até ficar quase horizontalmente ao solo, sem deixar que o movimento estancasse. "Olhe a direção!", Ela agarrou o volante e torceu um pouquinho a roda para um lado e depois para o outro. A carreteira resvalou à beira de um sulco, galgou o seguinte, produziu mais tração e foi adiante, sem que as rodas, entretanto, perdessem o rumo. Ao mesmo tempo, ele desferiu com os ombros toda a força que tinha no segundo empurrão.

Era o primeiro dia de férias de um verão quente e orgulhoso. As estradas estavam desimpedidas, retas, planas, inclinadas em uma descida deliciosa e permanente, como a facilitar o tráfego de todos os veículos, como deste "19", que corre agilmente, açulado por um menino seco mundo afora!

A simples chama do movimento ateara-lhes um instantâneo rubor às faces e os cabelos sujos dela estavam dourados como espigas de trigo no instante da seara.

O capinzal ondulava, tocado pelo mesmo vento que os impulsionava, enquanto a paisagem estática de repente se animara, como se isto fosse possível, por obra do próprio movimento que espoucara. Katja olhou para trás, para onde ele estava e sorriu.

Vigorosamente ele avançou e agora corria ao seu lado, rindo da velocidade que o carro tomava, às vezes se afastando e deixando o menino para trás, como se fosse fugir e ele brincasse de não mais alcançá-la.

Ela pôs o braço para fora da janela sem vidros, que emoldurava seu rosto, e os cabelos adejavam como trigo oscilando no princípio da seara. Pequenos caracóis dourados apareceram sobre a testa.

Ele queria ver, como se a examinasse minuciosamente, cada uma das pequenas transformações de que sempre suspeitara que somente as mulheres têm o dom. Mas agora que aconteciam tão próximas, não chegava a compreendê-las. Estava ofegante, mas não por cansaço. Sentia seu corpo como uma mola que saltava, se distendia e voltava a se recolher. O carro deixara de deslizar. Parecia que flutuava.

Um silêncio mútuo, enorme, os acolheu inesperadamente. Tinham chegado a algum lugar, sem dar-se conta de como e por onde haviam entrado, tal um desses sonhos que nos passam acordados, as fantasias mescladas às coisas ordinárias. Parecia que se moviam dentro de algo inexistente, mas extraordinariamente real. Era como encontrar um objeto totalmente criado pela fantasia e que finalmente aparecera. Ele queria guardá-lo só para si.

Toquei a sua mão temendo que a retirasse. Com meus olhos pedia mil vezes para que não o fizesse. Ela porém recolheu o braço. Ficou imóvel com a cabeça baixa e os cabelos dela eram como trigo esparramado num campo dourado. Mergulhei o meu olhar na sua nuca para ver como os cabelos brotavam de dentro da pele e querendo adivinhar o que ela estava escondendo na mente. Ela permanecia estática no contorno da janela contra o fundo oscilante lá fora! De lá, nos subtraíramos como numa espiral, cujas sucessivas voltas alongavam-se para longe. Foi naquela mesma espiral que eu a havia encontrado. Tal como eu, também ela estava saindo fora deste mundo.

12.

Esperei que a sua mão se desprendesse e voltasse. Por todos os lados, esperavam também as moitas verdes do capinzal. O vento se fôra, deixando um largo círculo de urubus sonolentos no ar. Pairavam distantes e indiferentes às pulgas amestradas que giravam tontas dentro dos novelos de poeira.

O sol parecia concentrado naquele fundo de vale, que resplandecia sob uma única labareda, como a produzida por um choque cataclísmico. Centenas de pás escavavam em todas as direções, agarradas por centenas de mãos e sob o fôlego de centenas de bocas que se abriam ansiando por ar puro. Repisavam um sem número de vezes os mesmos montes de detritos, numa procura paciente e sem fim, com que extraíam a ninharia adjeta de que se nutriam.

Senti pena dos cavalos, atrelados às carroças de rodas enormes, que sacolejavam pesadamente e rangiam soterradas sob a carga nauseante que arrastavam. Deambulavam cegos, os olhos tapados com trapos para que as moscas não devorassem as pupilas. Os matungos haviam adquirido a cor negra, indefinível e encardida da fuligem que se assentava no lombo em placas com o suor. Não havia quem se importasse com o que realmente eram: cavalos! Deixaram de ter qualquer semelhança com os outros animais e viviam imorredouramente atrelados à carga que puxavam, na repetição descabida de um procedimento medonho que não entendiam, ainda que obedientes aos gritos e às pancadas. "Eia!" Queria também açoitar os cavalos, mas para que fugissem e não voltassem lá nunca mais.

Ela mantinha o queixo apoiado sobre a mão fechada como um nó apertado. Me contemplava desconfiada da própria intuição, como se pressentisse este movimento indistinto, mas inevitável, que a poderia transportar inopinadamente ao âmago de algo melodioso e incompreensível. Ela não escutava tal música, porque distraiu-se momentaneamente com o longínquo bramido que chegou da concha do vale. O novelo de poeira se rompera e as carreteiras se espalhavam em todas as direções. Pequenos chumaços ficaram perdidos pelo caminho, como redemoinhos extraviados do corpo do furacão. Um dos calhambeques acabara de capotar.
Katja abriu a portinhola e ficou de pé no estribo. Levou as mãos em viseira sobre os olhos, procurando ver o inseto de patas para cima, que parecia espernear enraivecido. Logo em seguida pegou fogo e explodiu.

Katja deixou de sorrir. Voltou a sentar absorta em seus pensamentos, como desapontada por lhe haverem tirado alguma coisa. Não sabia bem o que era, mas lembrara-se de que, por um breve momento, sentira-se contagiada por algo que a apartara deste mundo, e que tampouco estava na velocidade.

A estrada detivera-nos ao princípio de um aclive que, se não apresentava um ângulo ascendente proeminente, nem por isto era menos respeitável ou menos cansativo. Se quiséssemos ultrapassá-lo, nos exigiria um esforço tremendo, desanimador, depois da correria alegre e desimpedida com que chegáramos até ali.

O vale desaparecia atrás da elevação, que descambava para um grupo ralo de árvores, as únicas no meio do capinzal. Veio-lhe o banal desejo de ver sua imagem refletida num espelho. Mas o carro não tinha mais nenhum, e tampouco vidros que oferecessem uma superfície lisa e polida como precisava. Sorriu com aquela repentina vontade. Pela primeira vez queria saber que impressão causava. Isto, agora, tinha uma importância de que nunca suspeitara e que acreditava definitivamente banida de sua vida há muito tempo.

Desejou ver o que acontecia com seu rosto ao sentir-se feliz. Achava-se bem e saltou para fora do carro para inspecionar a estrada. Era como se estivesse entretida com algo muito importante e que a obrigava a uma atenção minuciosa. Na verdade, fazia nada, mas deixava-se levar gostosamente por este algo que a atingira e a transportara até aquele menino. Não compreendia inteiramente o que a fazia sentir-se assim, mas sentia-se tocada por um sentimento de proteção pela primeira vez na sua vida. Perguntou-se desconfiada, se era sómente porque ele não poderia fazer nada para feri-la?

E, no entanto, paradoxalmente, a situação a desnorteava. Ao especular sobre os detalhes do que se passava, extraindo um a um de onde estavam, querendo examiná-los separadamente, tais pensamentos queimavam em seus dedos, quase não tendo por onde segurá-los.

Ele era um menino bobo e que não sabia fazer nada, e ela, uma mulher que vivera quase toda a vida só, sem que por isto se sentisse agradecida. Paulatinamente foi relegando ao desamparo este outro ser, que sempre nos acompanha, e que somente vem à tona quando estamos abandonados. Não porque estivesse escondendo alguma coisa, mas porque ela pertencia a um mundo, que, sem ser hostil, antes desesperado, representava forças, correntes e regiões que aquela criança desconhecia e para o qual ela não se sentia tampouco encorajada a convidá-lo. O rancor da vida encobriu pouco a pouco os sentimentos que poderia ter tido e extinguiu a compaixão e a doçura, como se precisasse demonstrar para si mesma que não se importava de estar perdida no mundo. Não mais pensava no que poderia ainda salvá-la, embora, por outro lado, nesse instante, começasse a temer que isto nunca mais viesse acontecer.

"Você é tão magrinho", a voz dela soou como um malicioso cristal retinindo. Estava bastante excitada e parecia infantil. Eu a via como uma menina levada, detendo-se um instante durante uma brincadeira, para admirar-se com alguma coisa que, no entanto, sempre lá estivera. O fato de que tinha passado desapercebida para reaparecer repentinamente adiante a desorientava, como se aquela constatação mostrasse a ela a impossibilidade do que estava lhe acontecendo. Eles tinham vindo depressa demais!

Era como se ela me atribuísse propriedades mágicas! Na verdade eu não tinha grandes habilidades com minhas mágicas: quando necessitava delas, geralmente não me acudiam. Ou, quando as manejava, produziam verdadeiros desastres. Como nas duas únicas vezes em que sucederam. "Tolinho", ouvi-a dizer.
13.

Na primeira tentativa do jovem mágico, uma gigantesca terraplanadeira emperrou inexplicavelmente em frente de nossa casa. Eu me deliciei com a pugna dos mecânicos para consertá-la tarde afora.

Na ocasião, eu convalescia de uma raivosa crise de asma que não me deixava sair do quarto. Da segunda vez, me lembro de ter produzido uma chuva torrencial acompanhada de granizo, que espatifou metade do telhado e arrasou com a pintura nova para o Natal. Diziam que eu tinha "boca ruim". Eu adorava ter uma boca tão ruim. Ninguém, que eu soubesse, tinha uma igual.

O trator era enorme, amarelo e novo. Vinha precedido por um batedor da policia numa motocicleta com a sirene ligada. Era um verdadeiro espetáculo.

Ajoelhado sobre a cama, eu apoiava inerme a minha face contra a vidraça. Pressentia uma tarde solitária e imóvel. Devia me movimentar o menos possível, para não danificar ainda mais os meus pulmões. Pensava inultimente em Sheila, fazendo planos para quando ela viesse me visitar. Você não se importa com minha asma, não é mesmo Sheila? Então, pule pra dentro das cobertas. Se tiver cuidado e não fizer nenhum barulho, ninguém vai desconfiar. Todos pensavam que eu estava dormindo. Instruía Sheila para evitar movimentos bruscos. Não podia me excitar, era o aviso que dava a toda hora minha mãe.

Teríamos passado a tarde abraçados, se não fosse pela chegada do trator. Joguei as cobertas no chão e fui espiar, o sorriso agradecido de Sheila bailando nos meus olhos. Foi com aquele mesmo sorriso que ela começou a recolher as suas roupas espalhadas por todo o quarto.

As lagartas do trator trituravam os paralelepípedos da rua. Veio gente pra fora, espiar aquilo passar. O rugido do motor era medonho. Assustada, Sheila queria sair imediatamente e voltar para casa. Não a vendo na rua assistindo ao cortejo, sua mãe bem poderia desconfiar.

As lagartas de aço imprimiram um indelével tracejado no calçamento, como um zipper lamacento estendido ao longo da rua. Era inútil insistir com Sheila para ficar escondida em minha cama. Ela temia que nos descobrissem, caso viessem espiar se eu continuava deitado e tranqüilo. Eu não sabia o que mais fazer para retê-la. Tinha que impressioná-la tão vivamente que, maravilhada, desistisse de partir e me deixar. Foi como decidi que o trator parasse de funcionar.

Disse bem alto, para que Sheila escutasse: "Tomara que essa máquina pare!" Pois a máquina parou mesmo. Com um rangido, alguma coisa quebrou lá dentro. Estacou.

Sheila não queria acreditar. Abaixei-me para que não me vissem na janela. Abri uma fresta entre a parede e a cortina e fui me erguendo devagar. A motocicleta deu meia volta numa larga curva na esquina e retornou com a sirene morrendo. O tratorista levantou do assento. Depois saltou lá de cima, onde ficavam as alavancas de comando. Deu uma volta ao redor do trator, subiu e sentou novamente. Parecia desnorteado. Empurrou todas as alavancas meticulosamente e as alavancas deslizaram plenamente para frente e para trás e ficaram alinhadas. A rua acompanhou em expectante silencio cada manobra que ele executava. Olhou para baixo e novamente para adiante. O motociclista acenou. Parecia o inicio de uma missa solene e o motociclista era o coroinha. O caminho estava desimpedido. O tratorista fechou os olhos enquanto toda a rua mantinha a respiração suspensa.

Sua mão foi indo lentamente em direção à chave da ignição e parou ali, como para ter certeza de que era o que devia fazer. Alguma coisa se mexeu lá no fundo de minha alma. Alguma coisa subiu borbulhando até a minha boca, fel amargo de arrependimento pelo que eu tinha produzido. Pelo amor de Deus, Senhor, faça esse trator arrancar.

Ele virou a chave e deu a partida. O ruído foi de areia solta correndo dentro de um cano de lata. O tratorista girou a chave e apagou o motor precipitadamente. Quebrado. Não restava dúvida nenhuma. Minha obra mágica. Iam ter que consertar.

Sheila me fitava com uma expressão de assombro. Era inacreditável! Eu também fiquei assustado. Temi que ela quisesse me denunciar. O malefício de minha voz se espalhara por toda a rua e havia no ar um silêncio pasmo e expectante. "Agora você vai ter que fazer o trator pegar de novo", disse Sheila espantada, como se agora isso fosse possível. O que ela queria dizer, era que toda culpa era só minha. "Ssshhhh!", fiz para ela, com um dedo rigidamente aplacando os seus lábios.

Um grupo de curiosos já se congregara em torno da máquina imóvel. Apareceu uma caixa de ferramentas. Eram de aço e do tamanho proporcional ao trator. Durante toda a tarde rastrearam o defeito. Desmontaram e tornaram a remontar diferentes partes do motor. Inútil, não houve jeito de pegar. O imenso trator parado na rua era inquietante como um mamute adormecido.

Meu pai chegou ao final do seu dia de trabalho. Os mecânicos continuaram enfiados horas a fio dentro daquela coisa silenciosa, parecendo que nunca mais ia querer acordar. Ligaram os fios de uma lâmpada de mão num poste de rua e procuraram o defeito noite afora. Passaram horas iluminando aqui e ali, por cima e por baixo, conjeturando sobre aquele mistério que não queria se abrir. As mães prepararam sanduíches: trouxeram café e as familias passavam o tempo na calçada. Ninguém jantou em casa. Meu pai enervou-se com o retinir das ferramentas e com as pragas rogadas dos mecânicos. Não conseguiu dormir a noite toda. Quando lhe sobrevinha uma crise de insônia, ele caminhava interminavelmente pela sala, passando de uma janela para outra, esmiuçando a noite com o olhar, como se alguma coisa na escuridão o impedisse de descansar. Eu, o malfeitor da história, adormeci com o gosto dos beijos de Sheila nos meus lábios feridos de tantas mordidas.
14.

Cobrira-me de temores pelas consequências do meu poder. Estava disposto a encará-lo apenas como o fortuito resultado de algumas coincidências, e não como o produto de minha diabólica intenção de modificar o destino das coisas e dos seres.

Porquanto o meu love affair com Sheila era impossível, por não passar de pura imaginação e, por isso mesmo, totalmente inexistente, a realidade que se produzira sob meus sortilégios, ainda que intangível, não era menor ou menos importante e, em tal caso, muitíssimo mais perigosa. Precisava ter cuidado com a ocorrência de futuros milagres, embora ansiasse por mais um, ardentemente.

Naquele momento, Katja tinha uma mão apoiada delicadamente sobre meu ombro. Confiadamente, cheguei-me mais. Ela envolveu a minha nuca com o braço. Apoiava-me no seu corpo, embora sem virar o rosto para vê-la. Temia que com isto viesse a despertá-la. Da mesma forma, não a tocava. Minhas mãos pendiam inermes, paralisadas, descrentes de que pudessem atingir alguma coisa. Eu não sabia mesmo fazer nada. Vamos covarde, eia! Esta garota está esperando por teus beijos. Mas eu somente escutava o descompasso do meu coração.

Minhas pernas bambearam. Me agarrei no macacão dela, sentindo que estava para cair ao solo. Buck, vou ter que acabar com Sheila. Agora, você vai ser padrinho do meu casamento com Katja.

O corpo de Katja vergou sob meu peso. Nós dois viemos abaixo e, ao tombar, levantei a minha cara para ela. Seu rosto aproximava-se velozmente do meu. Tinha uma expressão definida, precisa, de que sabia bem o que estava fazendo. Minha cabeça ficou retida na curva do seu braço. Eu não podia escapar-lhe. Como uma vítima a ser devorada, me entreguei sem nenhuma reação. Temia que, enfurecendo-a, ela viesse a me estraçalhar ainda em vida.

Senti como ela se aplacava. Sua língua quente e polpuda entrara em minha boca e banhava-se num movimento ondulatório, contínuo e sinuoso. Comecei a sugar-lhe a carne fervilhante e ela agradeceu com um ronronar que terminava resfolegante e insaciável.

Tomei a curva de suas costas em minhas mãos. Para certificar-me uma vez mais de que a retinha comigo, entrelacei meus próprios dedos, como se o contato deles me devolvesse a realidade daquele momento que não julgara possível.

“Venha pra cá”, ela desenroscou-se puxando-me pelo braço. Em sua boca formara-se um halo avermelhado; era como se ali houvesse uma erupção em andamento. Agarrou-me e me ergueu, arrancando minha camiseta num movimento impaciente e quase violento. Me beijou em seguida os ombros e me cheirou. De relance, notei as farpas eriçadas do capinzal. Depositou-me sobre o banco do carro e se ajoelhou na terra nua da estrada, com a cabeça entre as minhas as pernas separadas. Em seguida, levou minhas mãos aos seus cabelos e foi somente então que sua boca encontrou o que estava procurando. Eu submergi numa corrente de vagas ondulações, que me soltavam e me prendiam, elevando-me e puxando-me, por onde não havia nenhuma praia aonde chegar.

Para salvar-me, inconscientemente, agarrei os seus cabelos com o vigor de um afogado. Ela gritou de dor. Empurrou-me e levantou a sua boca para a minha, como se respirasse entre os dentes e estivesse pronta para fechá-la em torno de minha carne fresca e dilacerá-la. Me puxou novamente de encontro ao peito, quase me arrancando para fora do assento. O elástico do calção cingia os meus movimentos e eu, pensando que tudo havia terminado naquela pausa, puxei-o novamente até a cintura. Ela fez aquela expressão de desapontamento que eu lhe havia surpreendido quando paramos no início do aclive. Era como se estivesse perdendo alguma coisa pela qual não mais podia ser consolada. A estrada ondulava como uma tira metálica tremelicando nas emanações do calor. O meu corpo estava umedecido pelos beijos de Katja, mas eu sufocava. Desta vez foram os meus lábios que procuraram os seus. Ela retribuiu com um vagido de satisfação. E aí, atrevidamente, arriei inteiramente o meu calção.

15.

O macacão voou para a caixa de ferramentas no fundo do carro. Não dissemos mais nada quando ela por fim se afastou de mim. Parecia que não me deixava, mas que iria retornar dali a pouco, sem os detalhes de uma inútil despedida.

Antes de desaparecer acenou com um braço para o alto. Parecia subitamente velha e mirrada no vestidinho claro, enquanto retornava para o lugar que há pouco havia deixado.

Virou-se, e ao me ver ainda parado no mesmo lugar, repetiu energicamente o gesto, desta vez com os dois braços para o alto, ordenando que eu partisse.

Uma brisa rasa tocou as pontas do capinzal. A mancha fôsca pairando sobre o vale recortava-se nitidamente contra o sol, de tal forma que, se ainda havia suficiente claridade acima do seu contorno, abaixo a terra baça pela fuligem sufocava como se jamais a cor dos ráios dourados a houvessem tingido algum dia.

Por toda a parte brotavam pontinhos luminosos. Eram os gases inflamados do lixo em decomposição. Invisíveis durante o dia, agora pululavam na luz que esmaecia.

Ela recebeu uma lufada de ar seco nos olhos. O ar transportou o cheiro nauseante e ácido das pessoas misturadas ao lixo. Às dezenas, às centenas de corpos, pululava a multidão que produzia um ruído cavo e contínuo, entrecortado pelo retinir do metal dos chuços e das picaretas, misturado aos gritos e às blasfêmias de tantas outras centenas de bocas e vozes. Kátia pestanejou como se despertasse. O vale parecia uma usina com os fogos noturnos acesos. Na claridade das fogueiras surgiam vultos espectrais enrolados em trapos imundos que a sujeira transformara na couraça que protegia o primeiro corpo, este que não mais aparecia e que tão somente se movimentava, como se a articulação dos membros para cá e para lá, fosse a derradeira herança de um antigo corpo que desaparecera na imundice e na brutalidade e que nos intervalos deste movimento contínuo como um deambular sonâmbulo, detinha-se um instante, dobrava-se sobre alguma coisa que ela não podia distinguir o que era e a recolhia para dentro de um saco de estopa arrastado pelo chão. De qualquer modo sabia que não havia nada o que olhar. Estava perdida num monte de lixo, onde todos os seres, animais e homens, moviam-se como se um enigma estivesse soterrado sob seus pés. Tratavam de o desvendar, numa penitência infindável de rolar e revolver, até que tudo despencasse de volta sobre as suas cabeças.

Ao longe vagalumeavam as lâmpadas daquele autódromo que nunca fechava. Dois pobres carrinhos destruíam-se àquela hora num duelo ao qual ninguém assistia. Naquelas condições, não estavam competindo por nada mais do que um prato feito de comida.

A areia iluminada estendia-se como uma mancha amarela para todos os lados, mas, naquele local, não havia lixo. Dirigiu-se para a lâmpada mais baixa, ao lado de pequenas construções escuras com portas fechadas. A areia parecia esponja ressecada rangendo sob seus pés.

Quando chegou na birosca, fincou os cotovelos na taboa corrida que servia de balcão. Era apenas uma mulher banal e cansada, que vinha de longe, palmilhando o solo esgotado e ralo que estancava seus passos e a puxava para baixo, enterrando-a, caso ficasse imóvel por algum tempo no mesmo lugar. Pediu um copo cheio de cachaça com vermute. Bebeu e pediu outro. Com a segunda dose começou a dissipar de sua mente as sensações das últimas horas. Tinha sido ao mesmo tempo uma mulher e uma menina e, se bem que já readquirira novamente o seu equilíbrio, não sentia, entretanto, que assimilara completamente aquela experiência.

Sabia que iria passar a noite toda bebendo até que lá pela madrugada, quando por fim estivesse completamente bêbada, talvez não mais lembrasse do que quer que fosse, embora não pudesse afirmar que nada mais teria nenhuma importância.

16.

Depois que Katja desapareceu, retornei seguindo seus passos à distância. Não era a curiosidade o que me impelia. Queria vê-la. Precisava encontrá-la. Queria tocá-la. Não podia livrar-se de mim com um aceno. Queria-a mais uma vez.

Guiei-me pelos fogos e cuidadosamente procurei me manter afastado dos grupos de esfarrapados que disputavam o lixo. Se, pelo estado de minhas roupas e pela sujeira de meu corpo, pudessem me confundir, fazendo-me cavar com eles, temia ser consumido antes numa súbita erupção de labaredas sem que viessem me socorrer. Eu era, finalmente, um menino perdido como sempre desejara, e estava disposto a arrostar os perigos de tal condição, embora já fosse premente para mim a necessidade de um bom prato de comida. Tornara-me mais um faminto na multidão.

A pista estava silenciosa quando alcancei o grupo isolado de cabanas atarracadas. A areia rangia sob meus pés como esponja ressecada.
Finalmente a avistei. Estava embebida no halo de um poste de luz tisnada pelo vôo frouxo dos insetos que morriam no ar e caíam sobre o seu vestido. Seguia bebendo, apoiada no poste e o seu cotovelo, às vezes, saia da luz e uma parte do braço desaparecia na escuridão.

Me aproximei temendo que ela se virasse e me visse antes que eu pudesse alcançá-la. Caso ela fugisse para dentro da noite cravejada de fogos, não mais a poderia encontrar.

Ouvi vozes que se aproximavam. Um magote de homens emergiu da noite com sacos e ferramentas às costas. Batucavam em latas velhas e rodearam o poste de luz. Corri tentando abrir caminho e arrancá-la para fora do círculo, mas eles gargalhavam e me empurravam. Bêbados, julgavam-me um deles, se dirigiam a mim como se estivesse metido nos negócios da confraria. Comentavam a explosão da tarde. Um morto.

Katja desaparecera de minha visão.

Uma garrafa correu de mão em mão. A garrafa veio para mim, mas eu não mais os via. Nem levantei a mão para devolve-la. Um deles catou uma pedra sob o sapato e atirou-a, não com a intenção de me ferir, mas somente para me despertar.

- Ei, safado! Vai parar por aí? Passa a cachaça pra cá!
- Aposto que ele é surdo.
- Tú é surdo, ô-bundinha-mole?
- Surdo nada. Cai fora dai!

Katja retornou ao halo luminoso. Vestia outra vez o macacão anil e esfregava uma estopa nas mãos. Alguém volteou a bebida. Ela ergueu a garrafa e bebeu tão completamente quanto pôde, deixando o líquido correr para o fundo da garganta. Suavemente, um dos homens puxou-a para si e retirou a garrafa de seus lábios.

Procurei me orientar seguindo o mapa das minhas lembranças. Quando alcancei o rio, já era muito tarde. Sentei-me um momento para descansar. A lâmina d'água parecia estancada, já não corria entre as rochas, tão dura e lisa como uma pedra de amolar facas. Dava a impressão de que a turbulência havia se solidificado numa lage cinzenta, que serpenteava como um rio imóvel e impenetrável.

Eu ia fazer quatorze anos e o tempo custava a passar sobre as pedras do rio. Sheila continuaria a procurar os garotos para fazer deles imóveis sombras até encontrar a estátua que mais lhe agradasse.

A planície parecia não ter fim. Caminhei mais dois quilômetros, ou o que me pareceu esta distância. Afastava-me inexoravelmente de Katja. Não a encontraria nunca mais. Os seus cabelos nunca mais seriam como o trigo na seara e para onde quer que fosse, ela chegaria sempre como uma torrente de pedras, de lama, de lava e de graxa.

Era o final do primeiro dia de férias de um verão quente e doloroso. Eu não podia ainda ser considerado um homem, mas já não me cabiam os sonhos da infância. Mas não era tudo finalmente um sonho? Onde estava eu agora?

Seguramente flutuava banhado numa aura de euforia recolhidamente sagrada. Eu não tinha mais dúvidas de que Deus me perdoara. Sheila iria esquecer de mim e possivelmente eu dela. Era difícil saber quando as coisas terminavam. Estão diante de nós, ainda que evanescentes, como as imagens do incêndio da Biblioteca de Alexandria. Esperavam para serem captadas n'algum momento do futuro. Era como se tudo brotasse de duas sementes ao mesmo tempo: uma delas invisível, ao lado desta outra que semeamos e que um dia concorda em morrer. A outra, encerra todas as possibilidades de renascimento. É a planta mesma, esta que pode ser transplantada e, mais tarde, reviver.

Minhas pernas arrastavam-se débeis e lanhadas pelas finas hastes do capinzal. Nada era perfeito na vida, mas não me importava. Ou melhor, tomei a sucessão de incidentes que passo a passo foram me levando até ao carrinho de Katja, como o mecanismo de uma sutil predestinação, algo que se moveu junto comigo e que me guiou para longe do rio.

Naquela hora, em pé num canto da sala, meu pai fumava, com certeza ainda me esperando. Havia um turvo ar de infelicidade e desconsolo em sua face. Só podia ser porque eu não sabia fazer nada. Deus andava me mostrando coisas que não devia. Obrigado, Senhor, pelas delícias de Katja. Não sabia que era assim tão bom. E, já que estamos de bem, como posso ter a graça de ganhar um pouco mais?

Era inútil tentar colocar Deus naquilo. Deus não se importava com garotas e menos ainda, não ensinava meninos bobos a encontrá-las. Olhei para a abóboda acima onde Ele devia estar. Não havia nada no céu, além das estrelas imóveis nos intervalos da noite. Era o que Deus nos ensinava: a ficarmos sós, a aprendermos a viver assim e a não sentirmos medo desta condição. Era evidente que o verão estava desarranjando minhas idéias.

A visão dos seios de Katja me encheu os olhos. Em minha imaginação, cheirei novamente os seios de Katja. O calor era intenso. Tinham o cheiro de talco suado. O cheiro dela veio e voltou. Ficou só o cheiro, sem a visão. Se contasse, ninguém iria acreditar. Mas como contar? A quem contar? Precisava chegar logo em casa. Estava louco para examinar o meu pau. Tinha vontade de brandí-lo. Que coisa infernal o cheiro de uma mulher! Prendi novamente a respiração para reter o cheiro de Katja. Por este motivo então é que o pau existe? Não é só por aquela conversa fiada de procriação, com esquemas de enciclopédia e o resto pela imaginação? Não era só isso. Havia mais e era simplesmente a coisa mais imediata que havia na vida. Como uma planta, Katja o colheu e ele ficou pousado sobre a mão dela como se lhe houvesse sido dado. Então ela cuidou do pau. Cuidou dele como se o tivesse tirado de meu poder. Ela tinha ficado com o pau todinho 'pra ela. Puxa, meu Deus, que extraordinário! Que maravilha!

17.

Um cachorrinho latiu. Depois de algum tempo, o cachorrinho meteu a cabecinha entre os arbustos e apareceu. Quando me viu, o cachorrinho sorriu. Era um bom sinal. O cachorrinho agradeceu a seu modo. Parecia feliz por haver me encontrado. Era um cachorrinho peludinho e branco e estava todo sujo.

Sentei-me na beira da estrada. Estiquei minhas pernas doloridas sobre o asfalto túrgido do calor do dia que acabara e fiquei me aquecendo. O cachorrinho tossiu e começou a lamber uma pata. Com uma orelha apoiada no solo, escutei longamente os ruídos da rodovia. As quatro patas do cachorrinho trotaram diante de meus olhos. O pêlo dele estava incrustado de carrapichos como um novelo espinhento. O cachorrinho ganiu. Os espinhos arranharam minhas pernas quando ele se enovelou para dormir. O cachorrinho estava ferido demais para ser afagado. A sombra rápida de um carro em disparada me atingiu, cortando o sol de um átimo.

Ergüi a cabeça usando as mãos por trás do pescoço como apoio e fiquei olhando adiante dos meus pés descambados. O número "19" já estava desaparecendo no vórtice daquele grande "V" que os meus pés construíam, como se escoasse numa ampulheta e retornasse àquelas coisas que, no final, vão se dissolver, como o próprio tempo e a tudo que ele contém. Logo, não mais escutei o motor. Só o cachorrinho latiu.

A tarde completou o seu final. Ao mesmo tempo, todos os postes ao lado da rodovia verteram aquela luzinha mortiça e inútil que sómente servia para enfeitiçar os insetos do matagal. Ficavam rodeando as lâmpadas num vôo esgotador e esquecidos uns dos outros, como os restos de um pequenino planeta fragmentado girando em torno do sol. Assim morriam pouco a pouco, consumidos por aquela chamazinha que os seduzia até quando raiasse o novo dia para libertar os sobreviventes. Este era o engano da vida.

Precisava encontrar um lugar onde passar a noite.
Me levantei e parti. O cachorrinho me seguiu.


Posfácio

Final do verão em New York. As vitrines começam a mostrar os suéteres para a nova estação. As ruas ganham aquele aspecto que, para nós, chegando dos trópicos, têm o apelo de uma aventura próxima: o frio e os brancos meses do inverno.
Uma garoa me acompanha enquanto desço a pé a 6ª. Avenida desde a rua 58 até a 47. A chuva fina prenunciando o gelo, arranha ciciante como passos de gatinhos a avenida desprevenida.

Passei os últimos dois anos escrevendo meu primeiro livro. Ao meu lado, o tempo todo, tive comigo O Emblema Rubro da Coragem (The Red Budge of Courage), de Stephen Crane. Eu buscava sempre uma frase que julgava ter lido nele: “O regimento ondulou na planície”. Procurei, li, reli, voltei do meio para o final, ansioso e angustiado como um soldado cego perseguindo um inimigo talentoso que se evadia e não se deixava apanhar. A frase nunca mais apareceu. Não sei se a criei em minha imaginação, tomando por verdadeiro, algo que aquele livro não continha. Me deixei seduzir pela sugestão concisa da sua fórmula descritiva: a geografia do local, se infiltrando no movimento do regimento tomando posição antes da batalha. Podemos bem pressentir o perigo que se aproxima na ondulação dos soldados alinhados. Há o mesmo perigo na caminhada de um tigre, antes do horror da carnificina quando agarra a presa. Enquanto procurava a bendita frase, eu escrevia a minha história.

Presumo que tentei “por” o livro de Crane dentro do meu. Procurei encontrar o ritmo melódico que ele empregou para descrever o ato banal de lutar numa batalha. Eu me esforcei para capturá-lo, com o fim de narrar as transformações na vida de um rapazinho. Como o Henry, de Crane, o meu personagem também se sente despreparado para os acontecimentos que está vivendo.
Já é hora de dizer adeus a Crane. Preciso encontrar um talismã para quando soar novamente a hora.

Escrever é um ato solitário. Se você descrever como faz, vai produzir uma impressão tão pueril e bizarra, que é melhor saltar logo para outro assunto se não quiser passar por tolo. Para ser bem claro, não há nada que valha a pena ser dito da necessidade diária de escrever. A maior parte do tempo vai passar imerso num mutismo indiferente ao que está acontecendo em volta; viverá prevenido para que as portas permaneçam fechadas (não perguntem para quê? não haverá explicação); ameaça que irá cortar as cordas vocais do cachorro e passará os dias e as noites aterrorizado com as idéias que o assaltaram e que vai perder antes que alcance escrevê-las. Porque o que menos conta para a literatura são as idéias! Elas rodopiam ao redor como vagalumes numa noite de verão. Mas vá pegá-los! Certamente dará cabo de todos desastradamente. Escrever, portanto, é simplesmente utilizar o que se tem à mão. Neste trabalho não adianta procurar o que não for possível alcançar.

Entro na rua 47, em direção à Quinta Avenida. Estou em pleno distrito judeu dos diamantes. Fortunas fabulosas ficam guardadas nestas dezenas, centenas, incontáveis lojinhas, onde se exerce a profissão milenar de seduzir com a ilusão da fortuna que uma gema inacessível pode proporcionar. Muito sérios, os judeuzinhos barbudos e vestidos de negro passam por mim. Seus olhos já examinaram todas as riquezas do mundo, mas eles estão sempre prontos para avaliar as novas aventuras e desventuras que a cobiça enseja. A chuva aperta. Acelero o passo.
Abro uma porta envidraçada e me deleito com o torpor que me provocam estas prateleiras sobrepostas até o alto, carregadas como favos de mel. Quanto mais distantes e altas, por certo mais apetitosas parecem. Um gato malhado apanha a lufada de ar gelado que eu trouxe de fora e escapole para o fundo da livraria: Gotham Book Mart!

Quem um dia encarou um teclado com as letras do alfabeto esperando que o impulso chegue para tocá-las, e sofreu com a angústia diante de uma folha muda de papel; quem já foi insultado por um personagem que finalmente se mostra decepcionante e se desvanece antes de cumprir as promessas que parecia conter, deve alguma vez fazer esta peregrinação para usufruir da camaradagem dos companheiros que te olham ironicamente nas fotografias onde deixaram suas assinaturas, suas pequenas frases de despedida e de lembrança. Todos, algum dia antes, já escutaram a mesma pergunta: “por que o fazes?” Cada romance, cada novo livro, conto, poema, sinfonia ou canção, tenta responder a esta pergunta eterna.

Me lembro de uma ocasião em que estive na livraria Buchholtz, Avenida Jimenez de Quesada, Bogotá, um prédio de vidro em pleno mercado negro das esmeraldas. A fortuna corre na calçada entre mãos hábeis que fecham e abrem lenços brancos onde as pedrinhas rebrilham. Eu procurava na ocasião o livro de Bernal Diaz del Castilho, um soldado de Cortez, "Historia Verdadera de la Conquista de la Nueva España". Uma indiazinha entrou. Era uma menina de tranças negras sobre cada ombro, uma faixa atada na barriga com a escritura bordada de seu povo e a saia ampla das mulheres camponesas. Voltou o pescoço para o senhor que procurava meu livro: "Tienes Voltaire?" O homem baixou da escadinha. "Qualquiera", ela aduziu por esclarecimento. A indiazinha me fez compreender instantaneamente o significado da palavra "eternidade".

Aqui em N.Y., peço o "Chamber Music" - Bid adieu, adieu, adieu,/ Bid adieu to girlish days - encontro ao acaso folheando os poemas adorados. Um velho aponta para onde estava o livro: "há vinte anos que ninguém procura isso aqui". Meus pés caminham sobre as irregularidades das tábuas do assoalho da Gotham Book Mart. Agarro-me ao livro de Joyce como a um salva-vidas. Ao meu redor as caras mudas nas fotografias esperam para ver o que vou fazer em seguida. Todos que ali chegaram (Saroyan, Faulkner, Dos Passos, Steinbeck), em algum momento se sentiram perdidos, foram perseguidos, estavam sós ou, como eu, eram simplesmente estrangeiros em busca de proteção, de apoio e de calor para continuar a jornada.

É desta matéria que são feitas as livrarias. Quero dizer: sempre vais encontrar nelas alguém que dê uma mãozinha. Saio para o lusco-fusco de New York. Inquietos vagalumes aparecem adiante, me mostrando o caminho.

Outubro de 1994